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POLIS n.º 7 (II série) Janeiro / Junho 2023
“O CANDIDATO A PRIMEIRO-MINISTRO” A DINÂMICA DAS ELEIÇÕES LEGISLATIVAS EM PORTUGAL ENTRE O “DE JURE” E O “DE FACTO”
- João Ferreira Dias
ou condição, ou de outra forma, situação, posi-
ção ou condição sob tutela legal. Por seu turno,
o termo “de facto”, refere-se
a comportamentos, hábitos, ações ou omissões
de ação que ocorrem na prática independente-
mente daquilo que a lei estabelece ou prevê.
Trata-se, portanto, do aspeto ou dimensão
real ou factual de uma situação, posição ou
condição. Ou seja, o “de facto” corresponde
a comportamentos ou omissões de comporta-
mento recorrentes que adquirem força de cos-
tume pela repetição e aceitação social.
A distinção entre os dois conceitos tem carác-
ter relevante para se compreender como a lei
e a realidade podem diferir. Não raras vezes,
o que é estabelecido “de jure” pode não ree-
tir completamente a situação “de facto”, em
razão de circunstâncias múltiplas, como seja
falhas na implementação da lei, mudanças
nas circunstâncias ou práticas sociais que di-
vergem das normas legais.
Com efeito, a relação entre os conceitos de “de
jure” e “de facto” tem um longo historial teó-
rico no campo do direito, tendo diversos auto-
res contribuído para a discussão dessas noções
e as suas respetivas implicações na validade e
efetividade do direito. Um dos pensadores in-
uentes nessa discussão é John Austin, mem-
bro da escola positivista do Direito. Austin
(1861) a lei arma-se como um conjunto de
comandos emitidos por uma autoridade po-
lítica cuja validade resulta da sua aplicação
efetiva, concreta, ou seja, do seu cumprimen-
to “de facto”. Tal signica, portanto, que o
direito não pode, tão-apenas, ser teórico ou
meramente existente por via de normas es-
critas (espécie de “letra-morta”), mas implica
ser observado e aplicado na prática para que
seja considerado válido. Quer isto dizer que
a legitimidade do direito reside na sua efeti-
vação, por meio do cumprimento e execução
das leis, tanto pelas autoridades quanto pelos
indivíduos na vivência quotidiana.
De modo diverso segue Hans Kelsen, propo-
nente da “teoria pura do direito”. Segundo
Kelsen, a validade do direito é determinada
por uma norma fundamental, a grundnorm,
a qual se estabelece como fundamento último
de validade de todo o ordenamento jurídico.
Diversamente de Austin, Kelsen entende que
a validade do direito não depende da sua apli-
cação na prática ou da sua conformidade com
a realidade fática, antes que (i) em razão da
estrutura hierárquica das normas, cada nor-
ma detém validade em função da validade da
norma superior, (ii) a estrutura normativa
tem natureza autónoma e (iii) independe da
aplicação ou efetivação do direito na prática.
Desse modo, a validade do direito não depen-
de da sua aplicação, mas antes da coerência
interna e conformidade com a grundnorm.
Uma visão que merece relevo é a de Lon L.
Fuller (1964), autor da teoria do “Estado de
Direito”. Para Fuller, a validade do direito
está intrinsecamente ligada à sua conformida-
de com os princípios de justiça e moralidade,
considerando que para que um sistema jurídi-
co seja considerado justo e válido, é necessária
a presença, com caráter cumulativo, de vários
elementos que visam salvaguardar o primado
da justiça e da moralidade. Para tanto, a ideia
de Estado de Direito detém valor axial, a par-
tir da qual articula os demais elementos que o
garantem, garantindo o propósito ulterior do
direito. São esses elementos: (i) regras gerais e
públicas, ou seja, as leis devem ser formuladas
de forma clara e geral, aplicáveis a todos os
cidadãos, de modo que todos possam conhecê-
-las e obedecê-las; (ii) caráter prospetivo da
lei, donde as leis devem ser promulgadas an-
tes dos eventos que elas regulamentam, para
que os cidadãos possam agir em conformidade
com as normas estabelecidas; (iii) princípio da
não-contradição, i.e., as leis devem ser coeren-
tes entre si e não devem conter disposições que
se contradigam mutuamente, evitando assim
a incerteza e a inconsistência no momento da
sua aplicação; (iv) princípio da estabilidade,
pelo que as leis devem ter natureza estável,
garantindo a conança dos cidadãos e a pre-
visibilidade das normas jurídicas; (v) princí-
pio da aplicação consistente, de modo a que
as leis sejam aplicadas de forma consistente e
imparcial pelas autoridades competentes, ga-
rantindo, portanto, a igualdade de tratamen-
to de todos os cidadãos perante a lei. Fuller
argumenta que essas características são essen-
ciais no garante da justiça e da validade de
um sistema judiciário. Desse modo, um Esta-
do de Direito robusto garante a estabilidade,
previsibilidade e igualdade perante a lei, pro-
tegendo os direitos e as liberdades individuais
dos cidadãos.
Logo, para Fuller, a dimensão “de facto” é es-
sencial, uma vez que a validade do direito, no
seu entendimento, deriva da aplicação efetiva
deste, conquanto respeitando os princípios
da clareza, estabilidade, prospetividade, não-
-contradição e o que chamamos de publicida-
de dos atos. A tal acresce a ideia de que a apli-
cação justa e consistente do direito determina
a sua legitimidade e validade.
Assim, as diferentes perspetivas de Austin,
Kelsen e Fuller, mostram as complexidades e
as nuances envolvidas na compreensão da re-
lação entre as noções de “de jure” e de “de fac-
to”. Enquanto Austin enfatiza a importância
da aplicação efetiva do direito para a sua va-
lidade, Kelsen destaca a estrutura normativa
e a grundnorm como base para a validade do
direito, independente da sua aplicação práti-
ca. Por sua vez, Fuller introduz a dimensão
da justiça e moralidade como critérios para
a validade do direito, exigindo a presença de
elementos como regras gerais e públicas, pros-
petividade, coerência e aplicação consistente.
Contudo, tais abordagens teóricas não se re-
velam mutuamente excludentes, dado des-
tacarem diferentes aspetos na relação entre
“de jure” e de “de facto”. Nesse sentido, com-
preende-se que a validade do direito se expres-
sa por via de aspetos formais e institucionais,
bem como práticos e sociais. Isto implica que,
efetivamente, que “de jure” e de “de facto”
operam de modo diferente. Quer isto dizer
que se pode vericar a existência de previsões
e estatuições jurídicas, i.e., a conrmação de
disposições “de jure”, mas via de regra elas
carecem de efetividade e validade resultantes
da sua aplicação e observância na prática.
2. A ideia de perceção política
Considerando que o presente trabalho preten-
de reetir sobre a relação entre os conceitos de
“de jure” e de “de facto” no âmbito de eleições
legislativas, explicitando uma prática e uma
perceção, carece de explicitar a noção de per-
ceção política.
É importante ressalvar, ab initio, que a deni-
ção de perceção política pode variar com dife-
rentes autores e abordagens teóricas. Todavia,
de lato sensu, podemos como o processo pelo
qual os indivíduos interpretam, compreen-
dem e atribuem signicado aos eventos, atores
políticos, ideologias e questões políticas. Para
tal contribuem diversos fatores, máxime, os
processos de socialização do sujeito e o que em
antropologia se chama de “lugar de fala”, i.e.,
a circunstância social, económica e cultural
do sujeito que determina a sua posição social
e compreensão dos fenómenos sociais.
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