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POLIS n.º 7 (II série) Janeiro / Junho 2023
“O candidato a Primeiro-Ministro”.
A Dinâmica das Eleições Legislati-
vas em Portugal entre o “De Jure” e
o “De Facto”
1
“The candidate to PM”. The Dynamics of Legislative
Elections in Portugal between the “De Jure” and “De
Facto”
João Ferreira Dias
Centro de Estudos Internacionais-ISCTE
E-mail: jbfds@iscte-iul.pt
ORCID: 0000-0001-9056-8510
DOI: https://doi.org/10.34628/xv9z-da83
Sumário
Introdução.
1. Conceitos de “de jure” e “de facto”.
2. A ideia de perceção política.
3. A composição do parlamento e a forma-
ção do governo em Portugal.
4. A relação entre “de jure” e “de facto” nas
eleições legislativas em Portugal.
Conclusão.
Resumo: A relação entre as eleições legisla-
tivas e a formação do governo em Portugal
é um tema intrigante que envolve tanto as-
petos jurídicos quanto práticos. De acordo
com a Constituição Portuguesa, as eleições
legislativas têm o propósito de eleger a As-
sembleia da República, órgão legislativo do
país. No entanto, na prática e na perceção
pública, as eleições também são um meio in-
direto de eleger o primeiro-ministro. O tex-
to pretende analisar essa dinâmica, articu-
lando os paradigmas “de jure” e “de facto”.
Palavras-chave: De jure; De facto; Direito
Constitucional; Eleições legislativas.
Abstract: The rapport between legislative
elections and the formation of the govern-
ment in Portugal is an intriguing topic that
involves both legal and practical aspects.
According to the Portuguese Constitution,
legislative elections are intended to elect the
Parliament, the country’s legislative organ.
However, in practice and public perception,
elections also serve as an indirect means of
electing the Prime Minister. This essay ana-
lyzes this dynamic by articulating the “de
jure” and “de facto” paradigms.
Keywords: De jure; De facto; Constitutional
Law; Legislative elections.
tivas visarem eleger a Assembleia da Repúbli-
ca, que é o órgão legislativo do país, a verdade
é que decorre uma perceção pública de que tal
ato eleitoral determina, prima facie, a forma-
ção do governo por via da eleição do titular do
cargo de primeiro-ministro. Assim, o presente
artigo pretende analisar essa dinâmica, arti-
culando os paradigmas “de jure” e “de facto”,
mostrando como se distanciam por via da
perceção política, tornando-se factos políticos
distintos.
Além da introdução e da conclusão, o presen-
te artigo organiza-se numa exposição sobre os
conceitos de “de jure” e “de facto”, seguido de
uma sistematização da ideia de perceção em
matéria política. No terceiro ponto, realiza-
-se a exposição sumária da forma pela qual
se estabelece composição do parlamento e a
formação do governo em Portugal, na Consti-
tuição e respetiva lei eleitoral, para, por m,
de estabelecer a relação entre “de jure” e “de
facto” nas eleições legislativas em Portugal.
1. Conceitos de “de jure” e “de facto”
A densicação de conceitos é tarefa primordial
em ciências sociais, nas quais o Direito se inscre-
ve, não obstante o scopus juris, eminentemente
prático. Trata-se de locução latinas que visam
distinguir entre aquilo que está estabelecido
legalmente (“de jure”) e aquilo que ocorre na
prática (“de facto”). Assim, o termo “de jure”
pretende explicitar aquilo que está positivado,
tipicado e estabelecido pela lei, donde adqui-
re validade, escopo, efeitos próprios. Trata-se,
então, do aspeto legal de uma situação, posição
Introdução
1
A distinção entre “de jure” e “de facto” é
fundamental para entender a relação entre as
eleições legislativas e a formação do governo
em Portugal. De modo sistemático, “de jure”
refere-se àquilo que está estabelecido legal-
mente, conforme expresso na Constituição ou
na legislação vigente, enquanto “de facto” se
refere aos factos ou circunstâncias reais, in-
dependentemente do que está previsto na lei.
Esta distinção aporta às eleições legislativas
em Portugal de modo evidente, considerando
que independentemente de as eleições legisla-
1 O presente trabalho foi realizado com fundos da FCT
(UI/BD/151564/2021).
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- João Ferreira Dias
ou condição, ou de outra forma, situação, posi-
ção ou condição sob tutela legal. Por seu turno,
o termo “de facto”, refere-se
a comportamentos, hábitos, ações ou omissões
de ação que ocorrem na prática independente-
mente daquilo que a lei estabelece ou prevê.
Trata-se, portanto, do aspeto ou dimensão
real ou factual de uma situação, posição ou
condição. Ou seja, o “de facto” corresponde
a comportamentos ou omissões de comporta-
mento recorrentes que adquirem força de cos-
tume pela repetição e aceitação social.
A distinção entre os dois conceitos tem carác-
ter relevante para se compreender como a lei
e a realidade podem diferir. Não raras vezes,
o que é estabelecido “de jure” pode não ree-
tir completamente a situação “de facto”, em
razão de circunstâncias múltiplas, como seja
falhas na implementação da lei, mudanças
nas circunstâncias ou práticas sociais que di-
vergem das normas legais.
Com efeito, a relação entre os conceitos de “de
jure” e “de facto” tem um longo historial teó-
rico no campo do direito, tendo diversos auto-
res contribuído para a discussão dessas noções
e as suas respetivas implicações na validade e
efetividade do direito. Um dos pensadores in-
uentes nessa discussão é John Austin, mem-
bro da escola positivista do Direito. Austin
(1861) a lei arma-se como um conjunto de
comandos emitidos por uma autoridade po-
lítica cuja validade resulta da sua aplicação
efetiva, concreta, ou seja, do seu cumprimen-
to “de facto”. Tal signica, portanto, que o
direito não pode, tão-apenas, ser teórico ou
meramente existente por via de normas es-
critas (espécie de “letra-morta”), mas implica
ser observado e aplicado na prática para que
seja considerado válido. Quer isto dizer que
a legitimidade do direito reside na sua efeti-
vação, por meio do cumprimento e execução
das leis, tanto pelas autoridades quanto pelos
indivíduos na vivência quotidiana.
De modo diverso segue Hans Kelsen, propo-
nente da “teoria pura do direito”. Segundo
Kelsen, a validade do direito é determinada
por uma norma fundamental, a grundnorm,
a qual se estabelece como fundamento último
de validade de todo o ordenamento jurídico.
Diversamente de Austin, Kelsen entende que
a validade do direito não depende da sua apli-
cação na prática ou da sua conformidade com
a realidade fática, antes que (i) em razão da
estrutura hierárquica das normas, cada nor-
ma detém validade em função da validade da
norma superior, (ii) a estrutura normativa
tem natureza autónoma e (iii) independe da
aplicação ou efetivação do direito na prática.
Desse modo, a validade do direito não depen-
de da sua aplicação, mas antes da coerência
interna e conformidade com a grundnorm.
Uma visão que merece relevo é a de Lon L.
Fuller (1964), autor da teoria do “Estado de
Direito”. Para Fuller, a validade do direito
está intrinsecamente ligada à sua conformida-
de com os princípios de justiça e moralidade,
considerando que para que um sistema jurídi-
co seja considerado justo e válido, é necessária
a presença, com caráter cumulativo, de vários
elementos que visam salvaguardar o primado
da justiça e da moralidade. Para tanto, a ideia
de Estado de Direito detém valor axial, a par-
tir da qual articula os demais elementos que o
garantem, garantindo o propósito ulterior do
direito. São esses elementos: (i) regras gerais e
públicas, ou seja, as leis devem ser formuladas
de forma clara e geral, aplicáveis a todos os
cidadãos, de modo que todos possam conhecê-
-las e obedecê-las; (ii) caráter prospetivo da
lei, donde as leis devem ser promulgadas an-
tes dos eventos que elas regulamentam, para
que os cidadãos possam agir em conformidade
com as normas estabelecidas; (iii) princípio da
não-contradição, i.e., as leis devem ser coeren-
tes entre si e não devem conter disposições que
se contradigam mutuamente, evitando assim
a incerteza e a inconsistência no momento da
sua aplicação; (iv) princípio da estabilidade,
pelo que as leis devem ter natureza estável,
garantindo a conança dos cidadãos e a pre-
visibilidade das normas jurídicas; (v) princí-
pio da aplicação consistente, de modo a que
as leis sejam aplicadas de forma consistente e
imparcial pelas autoridades competentes, ga-
rantindo, portanto, a igualdade de tratamen-
to de todos os cidadãos perante a lei. Fuller
argumenta que essas características são essen-
ciais no garante da justiça e da validade de
um sistema judiciário. Desse modo, um Esta-
do de Direito robusto garante a estabilidade,
previsibilidade e igualdade perante a lei, pro-
tegendo os direitos e as liberdades individuais
dos cidadãos.
Logo, para Fuller, a dimensão “de facto” é es-
sencial, uma vez que a validade do direito, no
seu entendimento, deriva da aplicação efetiva
deste, conquanto respeitando os princípios
da clareza, estabilidade, prospetividade, não-
-contradição e o que chamamos de publicida-
de dos atos. A tal acresce a ideia de que a apli-
cação justa e consistente do direito determina
a sua legitimidade e validade.
Assim, as diferentes perspetivas de Austin,
Kelsen e Fuller, mostram as complexidades e
as nuances envolvidas na compreensão da re-
lação entre as noções de “de jure” e de “de fac-
to”. Enquanto Austin enfatiza a importância
da aplicação efetiva do direito para a sua va-
lidade, Kelsen destaca a estrutura normativa
e a grundnorm como base para a validade do
direito, independente da sua aplicação práti-
ca. Por sua vez, Fuller introduz a dimensão
da justiça e moralidade como critérios para
a validade do direito, exigindo a presença de
elementos como regras gerais e públicas, pros-
petividade, coerência e aplicação consistente.
Contudo, tais abordagens teóricas não se re-
velam mutuamente excludentes, dado des-
tacarem diferentes aspetos na relação entre
“de jure” e de “de facto”. Nesse sentido, com-
preende-se que a validade do direito se expres-
sa por via de aspetos formais e institucionais,
bem como práticos e sociais. Isto implica que,
efetivamente, que “de jure” e de “de facto”
operam de modo diferente. Quer isto dizer
que se pode vericar a existência de previsões
e estatuições jurídicas, i.e., a conrmação de
disposições “de jure”, mas via de regra elas
carecem de efetividade e validade resultantes
da sua aplicação e observância na prática.
2. A ideia de perceção política
Considerando que o presente trabalho preten-
de reetir sobre a relação entre os conceitos de
“de jure” e de “de facto” no âmbito de eleições
legislativas, explicitando uma prática e uma
perceção, carece de explicitar a noção de per-
ceção política.
É importante ressalvar, ab initio, que a deni-
ção de perceção política pode variar com dife-
rentes autores e abordagens teóricas. Todavia,
de lato sensu, podemos como o processo pelo
qual os indivíduos interpretam, compreen-
dem e atribuem signicado aos eventos, atores
políticos, ideologias e questões políticas. Para
tal contribuem diversos fatores, máxime, os
processos de socialização do sujeito e o que em
antropologia se chama de “lugar de fala”, i.e.,
a circunstância social, económica e cultural
do sujeito que determina a sua posição social
e compreensão dos fenómenos sociais.
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Zaller (1992) des-
taca as informações
disponíveis na for-
mação de opiniões
e atitudes políticas.
De acordo com tal
perspetiva, os sujei-
tos compreendem a
sua realidade políti-
ca através de ltros
cognitivos e emocio-
nais, assimilando e
interpretando infor-
mações de maneira
seletiva de acordo
com suas crenças,
valores e experiên-
cias anteriores
Zaller (1992) destaca as informações dispo-
níveis na formação de opiniões e atitudes
políticas. De acordo com tal perspetiva, os
sujeitos compreendem a sua realidade políti-
ca através de ltros cognitivos e emocionais,
assimilando e interpretando informações de
maneira seletiva de acordo com suas crenças,
valores e experiências anteriores. Esta ideia é
particularmente importante e, à época, pros-
petiva, considerando a forma como as redes
sociais e os seus algoritmos vão fornecendo
informações concordantes com o pensamento
dos sujeitos, reforçando os seus valores, cren-
ças, preconceitos e outras atitudes. Por seu
turno Mendelberg (2001) enfatiza a dimensão
institucional da aliação e identicação par-
tidárias na denição de perceção política. De
acordo com essa perspetiva, a perceção polí-
tica é inuenciada pela identicação com um
determinado grupo político, que molda as
crenças e atitudes dos indivíduos em relação
a questões políticas especícas. Ou seja, os su-
jeitos constroem a sua perceção dos fenóme-
nos políticos em função da forma com os dife-
rentes partidos se posicionam face a esta, em
especial os partidos com que se identicam
ideologicamente. Contribuindo para comple-
xicação conceptual, Iyengar e Kinder (1987)
argumentam que os media desempenham um
papel fundamental na modelação da perceção
política, pois ao fornecerem informações mol-
dam a agenda política e podem inuenciar as
atitudes e opiniões dos indivíduos. O contri-
buto dos meios de comunicação social é abso-
lutamente estrutural, sendo reconhecível que
a forma como as notícias são apresentadas
pode inuenciar a opinião pública e moldar a
visão que os sujeitos têm dos atores políticos
e das questões políticas. O mesmo ocorre, e de
forma mais evidente, com as redes sociais (v.g.
Sustein, 2017).
É útil o recurso à teoria de gatekeeping de
Lewin (1947) a qual postula que os meios de
comunicação de massa selecionam e ltram
as informações que são apresentadas ao pú-
blico, determinando a relevância da informa-
ção. Esta ltragem produz uma perceção da
relevância maior ou menor de acontecimentos
políticos. Esta proposta teórica dialoga com
a teoria do agendamento (“agenda-setting
theory”) proposta por Maxwell McCombs
e Donald Shaw (1972), a qual sugere que os
meios de comunicação, por meio da seleção e
ênfase dada a certos temas, bem como pelo
poder que detém, podem inuenciar a agenda
pública, ou seja, os assuntos considerados re-
levantes e dignos de atenção, bem como a for-
ma como são apresentados. A partir do estudo
da cobertura das eleições presidenciais norte-
-americanas de 1969, McCombs e Shaw des-
cobriram que a cobertura mediática inuen-
ciava a perceção do público sobre quais eram
os problemas mais signicativos na sociedade.
Vale reconhecer que tais propostas teóricas
não se independentizam. Com efeito, estas
têm a capacidade de se articular de modo a
tornar a noção de perceção política mais só-
lida e teoricamente consistente. Isto porque
a perceção política não deve tomar os fatores
de modo separado, mesmo que haja uma pre-
ponderância na relação entre eles. A perce-
ção política pode ser inuenciada por fatores
como o contexto social, a imprensa, as inte-
rações interpessoais e as estruturas de poder.
Desse modo, a perceção política é um processo
complexo e multidimensional, que envolve a
interpretação e atribuição de signicado aos
eventos políticos com base em ltros cogniti-
vos, emocionais, identitários e sociais.
Para a reexão presente a noção de perceção
política tem relevância, dado que permite dis-
tinguir entre “de jure” e “de facto” no âmbi-
to da relação entre as eleições legislativas e a
formação do governo em Portugal, como será
saliente de seguida.
3. A composição do parlamento e a formação
do governo em Portugal.
Nos termos da Constituição da República Por-
tuguesa (CRP), a “Assembleia da República é a
assembleia representativa de todos os cidadãos
portugueses” (art.º 147.º, CRP), tendo “o míni-
mo de cento e oitenta e o máximo de duzentos
e trinta Deputados, nos termos da lei eleitoral”
(art.º 148.º, CRP), a qual xa em 230 (Artigo
13.º/1, Lei n.º 14/79, de 16 de maio) o número
de deputados eleitos ao parlamento português.
Os deputados são eleitos por círculos eleitorais
geogracamente denidos na lei (art.º 149.º/1,
CRP), sendo que esta estabelece que os círcu-
los eleitorais do território nacional geram 226
deputados, através de uma distribuição pro-
porcional segundo o método de Hondt (Artigo
13.º/2, Lei n.º 14/79, de 16 de maio). Os restan-
tes lugares vagos, são determinados pelos dois
círculos eleitorais da emigração, nos termos do
art.º 12.º/4, da lei eleitoral.
A legislatura tem a duração de 4 anos (4 ses-
sões legislativas), de acordo com o disposto no
art.º 171.º/1 da CRP, sendo que novas eleições
ocorrem entre o dia 14 de setembro e o dia 14
de outubro do ano correspondente ao termo
da legislatura (art.º 19.º/2 da lei eleitoral),
sendo a data marcada pelo presidente da Re-
pública com a antecedência mínima de 60 dias
ou, em caso de dissolução, com a antecedência
mínima de 55 dias, nos termos do art.º 19.º/1
da mesma lei.
Após este processo eleitoral desencadeia-se
a formação do governo. Nos termos do art.º
187.º/1 da Constituição, o Primeiro-Ministro
(PM), enquanto chefe de governo no sistema
de governo em vigor em Portugal, é nomeado
pelo Presidente da República (PR), ouvidos
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os partidos representados na Assembleia da
República (AR) e tendo em conta os resulta-
dos eleitorais. Na prática, decorre o costume
de que Presidente da República convide a for-
mar governo o líder do partido ou coligação
mais votada, entendendo que é essa a vontade
popular expressa por via do voto. Sobre este
assunto, comentam Gomes Canotilho e Vital
Moreira (2010: 434) que embora a nomeação
do PM revele a precedência presidencial, e
não careça de aprovação parlamentar, tendo
em conta que o Governo presta contas à AR,
o PR deverá nomear um PM capaz de formar
um governo capaz de subsistência, ou seja,
que não seja inviabilizado pela AR. Se no caso
de uma maioria clara o PR não tem outra
possibilidade de escolha senão nomear o nome
indicado pelo partido ou coligação de parti-
dos maioritários, nos casos de minorias o PR
goza de maior possibilidade de escolha. Não
obstante, rera-se, não obstante a expressão
dos resultados, o PR “não está constitucional-
mente limitado a aceitar o candidato a PM do
partido mais votado, ainda que maioritário,
visto que as eleições para a AR não se des-
tinam a eleger o PM (embora na prática as
eleições parlamentares sejam inequivocamen-
te inuenciadas pelos programas de governo e
pela personalidade dos presumíveis candida-
tos a primeiro-ministro” (Gomes Canotilho &
Moreira, 2010: 434).
4. A relação entre “de jure” e “de facto” nas
eleições legislativas em Portugal.
A perceção política desempenha um papel
fundamental na formação do governo em
Portugal, transcendendo os factos concretos e
sua relevância efetiva, avançando para a for-
ma como certos eventos são percebidos pela
opinião pública, onde a agência dos órgãos de
comunicação social ganha relevo. No contex-
to em questão, a importância da perceção po-
lítica está intrinsecamente ligada às fronteiras
entre o “de jure” e o “de facto”.
No assunto em apreciação neste trabalho, a
perceção política reveste-se de grande impor-
tância, vertendo sobre as fronteiras entre “de
jure” e “de facto”. É importante destacar
que, «de jure», a Constituição Portuguesa
não estabelece a obrigação de o Presidente da
República nomear como Primeiro-Ministro
o líder do partido mais votado. No entanto,
«de facto», essa prática se estabeleceu como
um costume constitucional, gerando uma
perceção política de procedimento regular.
A perceção de que a formação do governo de-
corre “de facto” dos resultados das eleições le-
gislativas, ou seja, de que os resultados deter-
minam diretamente a formação do governo,
perdeu a dimensão costumeira nas eleições de
2015. Esse evento representou um verdadeiro
“facto político” que abriu espaço para um de-
bate sobre a prática corrente de formação do
governo em Portugal e uma referência à letra
constitucional (“de jure”) para vericar os li-
mites.
Após as eleições legislativas de 2015, venci-
das em minoria pela coligação Partido Social
Democrata (PSD)-Coligação Democrática
e Social (CDS-PP), liderada pelo então Pri-
meiro-Ministro Pedro Passos Coelho, o líder
do Partido Comunista Português (PCP), Je-
rónimo de Sousa, armou publicamente que
António Costa “só não é primeiro-ministro se
não quiser”. Esse anúncio abriu caminho para
negociações parlamentares entre o Partido
Socialista (PS), liderado por António Costa, a
Coligação Democrática Unitária (CDU), for-
mada pela coligação entre o PCP e o Partido
Ecologista “Os Verdes”, e o Bloco de Esquer-
da (BE). Foi estabelecido um acordo parla-
mentar que viabilizou um programa de gover-
no do PS e resultou no chumbo do programa
de governo da coligação PSD-CDS, ativando
o artigo 195.º/1 alínea d) da Constituição,
que determina que a rejeição do programa de
governo implica a demissão deste. Após esse
chumbo, as negociações foram formalizadas,
por exigência do então Presidente da Repú-
blica, Aníbal Cavaco Silva, resultando na
formação de um novo governo e garantindo a
aprovação do programa de governo e a esta-
bilidade parlamentar ao longo da legislatura
de 2015-2019.
O segundo aspeto relevante no impacto
da perceção política na relação entre o “de
jure” e o “de facto” na formação do governo
em Portugal está relacionado ao escopo das
eleições legislativas. Como mencionado, “de
jure”, o referido ato legislativo tem o efeito
de eleger os deputados para a Assembleia da
República, o órgão legislativo, nos termos da
Constituição e da Lei Eleitoral. Dessa prática
decorre o costume da formação do governo e
da nomeação do Primeiro-Ministro com base
nos resultados eleitorais.
No entanto, na prática, as eleições legislati-
vas em Portugal têm sido utilizadas como um
meio indireto de eleger o Primeiro-Ministro.
É comum nos meios de comunicação social re-
ferir o líder partidário ou da coligação como
“candidato a primeiro-ministro”. Isso reete
uma perceção política do ato eleitoral, que
tem efeitos político-sociais concretos. Ao enfa-
tizar a formação do governo por meio da ideia
de “eleição do primeiro-ministro”, desloca-se
a atenção do público do órgão parlamentar
para o titular desse cargo. Como aponta Ma-
rina Costa Lobo (2006), as eleições legislati-
vas dependem signicativamente da liderança
partidária e da sua capacidade de legitimação
pública. Esse deslocamento da ênfase na es-
colha da composição parlamentar para a es-
colha do Primeiro-Ministro é reforçado pelos
próprios partidos e coligações, que durante a
campanha eleitoral apresentam os seus líderes
como candidatos ao cargo. Isso ocorre devido
à ênfase na legitimação e carisma da gura
do líder, bem como ao facto de que, apesar da
publicidade das listas partidárias, os cidadãos
não têm opção de votar na composição dessas
listas no seu círculo eleitoral. Esse distancia-
mento questiona o princípio da representati-
vidade parlamentar, pois os cidadãos deixam
de se sentir representados no parlamento,
gerando um efeito de polarização acentuado
pelos movimentos populistas que dividem a
sociedade entre “nós”, o povo, e “eles”, as eli-
tes políticas (Mudde & Kaltwasser, 2017).
A partir do momento em que as eleições legis-
lativas são revestidas de uma natureza distinta
de sua função “de jure”, elas passam a operar,
“de facto”, como atos eleitorais destinados a
eleger o Primeiro-Ministro. Nesse sentido, a
avaliação pública está centrada na competên-
cia e carisma dos potenciais “candidatos” ao
cargo. Embora a Constituição atribua a for-
mação do governo a um procedimento desen-
cadeado pelas eleições para a Assembleia da
República, culminando com o Presidente da
República ouvindo os partidos representados
e observando a composição parlamentar para
avaliar a estabilidade governativa, a prática
tem sido de eleger indiretamente o Primeiro-
-Ministro por meio das eleições legislativas.
Essa prática estabeleceu-se ao longo do tempo
como uma convenção política e é um exemplo
de como o sistema político pode funcionar “de
facto” de forma diferente do que é prescrito
“de jure” na Constituição.
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- João Ferreira Dias
Conclusão
Em suma, a perceção política desempenha um
papel signicativo na formação do governo em
Portugal, moldando a forma como os eventos
políticos são percebidos pela opinião pública.
A ênfase na eleição do Primeiro-Ministro du-
rante as eleições legislativas desloca a atenção
do órgão parlamentar para o titular do cargo,
inuenciando a dinâmica política do país. Essa
perceção política é inuenciada pela cobertura
mediática e pela ênfase na gura do líder parti-
dário como candidato a Primeiro-Ministro.
No entanto, é importante ressaltar que essa per-
ceção política nem sempre está alinhada com o
que é estabelecido legalmente. Enquanto “de
jure”, a formação do governo é determinada
pelo resultado das eleições legislativas e pela ca-
pacidade de um partido ou coligação de reunir
maioria parlamentar, procedimento que carece,
igualmente “de jure”, da atuação do Presiden-
te da República, o qual nomeia o Primeiro-Mi-
nistro, ouvidos os partidos com assento parla-
mentar e avaliados os resultados eleitorais. No
entanto, no plano “de facto” as eleições legisla-
tivas têm sido usadas como uma forma indireta
de escolher o Primeiro-Ministro. Essa prática
estabelecida ao longo do tempo como uma con-
venção política demonstra como o sistema polí-
tico pode funcionar de maneira diferente do que
é prescrito pela Constituição.
Essa discrepância entre o “de jure” e o “de
facto” levanta questões sobre a natureza e a
legitimidade do sistema político. Ao se con-
centrar na eleição do Primeiro-Ministro, as
eleições legislativas podem perder a sua fun-
ção primordial de eleger os deputados para
a Assembleia da República, que é o órgão le-
gislativo responsável por representar o povo e
legislar em nome dos interesses da sociedade.
Além disso, a ênfase na gura do líder partidá-
rio como candidato a Primeiro-Ministro pode
gerar um distanciamento entre os eleitores e
o processo de representação política, a partir
de um processo de estreitamento político da
representatividade, uma vez que as eleições le-
gislativas se vêm esvaziadas do seu signicado
“de jure” de órgão representante da vontade
popular. Isto deve-se ao facto de que o princí-
pio do aprofundamento da democracia parti-
cipativa, previsto na Constituição (art.º 2.º in
ne), não ganhou uma dimensão “de facto”.
Pelo contrário, à medida em que os cidadãos
ganham maior consciência política e as redes
Sentimento reforçado pelo facto de as listas
partidárias serem fechadas, i.e., não decorrer
a possibilidade dos eleitores eleger os candida-
tos pelo seu círculo eleitoral.
Ad summam, a análise da relação entre a per-
ceção política, o “de jure” e o “de facto” na for-
mação do governo em Portugal mostra como
as eleições legislativas assumiram um papel e
um signicado políticos além de sua investidu-
ra original. A forma como os eventos políticos
são percebidos pela opinião pública, inuencia-
da pelos media e pela ênfase na gura do líder
partidário como candidato a Primeiro-Minis-
tro, pode distorcer a compreensão do proces-
so democrático e da representatividade par-
lamentar. Essa discrepância levanta questões
importantes sobre a legitimidade e a ecácia
do sistema político, destacando a necessidade
de um debate mais amplo sobre a relação entre
o poder executivo e o legislativo, bem como so-
bre a participação cívica no processo político.
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Ad summam, a aná-
lise da relação entre
a perceção política, o
“de jure” e o “de fac-
to” na formação do
governo em Portugal
mostra como as elei-
ções legislativas as-
sumiram um papel e
um signicado polí-
ticos além de sua in-
vestidura original. A
forma como os even-
tos políticos são per-
cebidos pela opinião
pública, inuenciada
pelos media e pela ên-
fase na gura do líder
partidário como can-
didato a Primeiro-
-Ministro, pode dis-
torcer a compreensão
do processo democrá-
tico e da representati-
vidade parlamentar
sociais se apresentam como canais de parti-
cipação política informal, o fosso entre a voz
do cidadão e ação parlamentar agudiza-se.
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POLIS n.º 7 (II série) Janeiro / Junho 2023
“O CANDIDATO A PRIMEIRO-MINISTRO” A DINÂMICA DAS ELEIÇÕES LEGISLATIVAS EM PORTUGAL ENTRE O “DE JURE” E O “DE FACTO”
- João Ferreira Dias
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