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OS ACORDOS COM VISTA À PRESTAÇÃO
DE CUIDADOS VITALÍCIOS
(DOS EMBARAÇOS DOS EXPEDIENTES UTILIZADOS
NO PRESENTE ÀS DIFICULDADES NA CONSTRUÇÃO
DE UMA FIGURA TÍPICA)
AGREEMENTS WITH THE PURPOSE OF PROVIDING LIFETIME CARE
(FROM THE ISSUES OF THE EXPEDIENTS USED IN THE PRESENT TO THE
DIFFICULTIES IN THE CONSTRUCTION OF A TYPICAL FIGURE)
Paulo J. Moreira
1
DOI: https://doi.org/10.34628/crrx-gb05
Resumo: O atual contexto sociodemográfico português convoca o jurista
a uma reflexão mais profunda em torno dos acordos com vista à prestação de
cuidados vitalícios. As figuras jurídicas tipificadas no CC (Código Civil) não são
axiomas antepostos à vontade das partes, que face a eles têm que ajustar a sua
expressão volitiva. Pelo contrário, as declarações negociais devem ser interpretadas
à luz das regras vertidas nos art. 236.º e segs. do CC, não estando as partes coartadas
na realização de contratos diferentes dos previstos na lei (art. 405.º do CC).
Fenómenos como a subversão de expedientes legais, como é o caso do testamento,
e a utilização recorrente da doação modal podem ser sintomas da ausência de uma
figura contratual onerosa tipificada no ordenamento jurídico português propensa
a essa finalidade. Face à parca amplitude atribuída ao pacto sucessório (art. 2028.º,
n.º 2 do CC) e perante a natureza da prestação de renda vitalícia com origem
contratual (prestações de dare – art. 1238.º do CC), sobra o espaço que é conferido
pelo numerus apertus para as partes conformarem um convénio que melhor espelhe
os seus intentos. Um porvindouro labor legiferante, quiçá atento ao que se avançou
1
Doutorando em Direito (desde 2021) pela Faculdade de Direito da Universidade Lusíada
– Norte (Porto). Licenciado (2018) e Mestre (2021) em Direito pela Universidade Lusíada – Norte
(Porto). Investigador no Centro de Estudos Jurídicos Económicos e Ambientais (CEJEA) desde 2020.
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em outros ordenamentos, não deixará de se ver confrontado com desafios, como os
relacionáveis com o conteúdo e realização da prestação de cuidados.
Palavras-chave: Alimentos; Contrato atípico; Cuidados vitalícios; Doação
modal; Envelhecimento; Pacto sucessório; Renda vitalícia, Testamento.
Abstract: The current Portuguese socio-demographic context calls the jurist to
a deeper reflection around the agreements with the purpose of providing lifetime
care. The legal figures typified in the CC (Civil Code) are not axioms that are prior
to the will of the parties, who must adjust their volitional expression to them. On the
contrary, the negotiation declarations must be interpreted in the light of the rules
laid down in art. 236.º et seq. of the CC, not being the parties forbidden to conclude
other agreements than those established by law (art. 405.º of the CC). Phenomena
such as the subversion of legal expedients, as is the case of the testament, and the
frequent use of the modal donation may be symptoms of the absence of an onerous
contract typified in the Portuguese legal system dedicated to this purpose. In face of
the limited amplitude attributed to the succession pact (art. 2028.º, n.º 2 of the CC)
and considering the nature of the contract-based life annuity (dare – art. 1238.º of
the CC), leftover the room conferred by the numerus apertus for the parties to create
an agreement that best reflects their intents. A future legislative process, which will
perhaps pay attention to what has been achieved in other legal systems, will be
faced with challenges, such as those relating to the content and execution of the
delivery of care.
Keywords: Aliments; Atypical contract; Lifetime care; Modal donation; Aging;
Succession pact; Life annuity; Testament.
Sumário: 1. Exposição do problema. 2. A prestação de cuidados
vitalícios na história e no atual CC. 3. A disposição testamentária
e a frustração da expectativa de facto. 4. As doações modais e seus
constrangimentos. 4.1. O incumprimento do encargo. 4.2. A reserva de
usufruto. 4.3. O teor da cláusula modal. 4.4. As regras de direito sucessório.
4.5. As reticências em torno da verdadeira natureza do negócio celebrado.
5. Os acordos celebrados ao abrigo do princípio da liberdade contratual
(art. 405.º do CC). 6. Contributos para uma futura tipificação de um acordo
oneroso e dotado de uma alea com vista à prestação de cuidados vitalícios.
6.1. O afastamento da fisionomia do contrato de renda vitalícia. 6.2. O
estado da arte no direito comparado. 6.3. Os desafios apostos ao legislador
na consagração de uma figura típica. Bibliografia. Jurisprudência.
1. Exposição do problema
Do espaço cimeiro que lhe é atribuído na hierarquia das fontes de direito
no nosso ordenamento jurídico, a CRP (Constituição da República Portuguesa)
2
atribui ao Estado, para proteção da família, a incumbência de promoção de uma
política de terceira idade (67.º, n.º 2, al. b) que respeite a autonomia pessoal do idoso
2
Decreto de 10 de abril de 1976 com as alterações, entretanto, introduzidas.
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e que o proteja contra o isolamento e a marginalização (art. 72.º, n.º 1; 9.º, al. d;
13.º; 26.º, n.º 1; 63.º, n.º 3 e 5)
3
. O objetivo é que, com a adoção de medidas, se
proporcione à pessoa idosa oportunidades de realização pessoal através de uma
participação ativa na vida da comunidade (art. 72.º, n.º 2 da CRP)
4
.
A criação do complemento solidário para idosos
5
, a introdução do Estatuto
do Cuidador Informal
6
, o acolhimento familiar de idosos
7
, o testamento vital,
a procuração de cuidados de saúde
8
, a recente e profunda transformação do
regime das incapacidades que deu lugar ao instituto do maior acompanhado
9
e
a consagração do mandato com vista ao acompanhamento
10
são apenas alguns
exemplos concretos de prossecução direta ou indireta das sobreditas determinações
constitucionais.
Numa sociedade em mutação permanente, em que o hoje é o ontem de
amanhã, não deve a lei abster-se de acompanhar as transformações sociais que se
vão verificando e de se ajustar aos contextos com que o nosso país se vai debatendo.
A evolução desnivelada dos nossos indicadores demográficos mostra um cenário
de envelhecimento populacional que exacerba a necessidade de reflexão sobre
o que mais pode fazer o legislador a respeito da problemática da velhice
11
. No
3
No âmbito da UE atente-se, igualmente, no art. 25.º da CDFUE (Carta dos Direitos Fundamen-
tais da União Europeia).
4
Apesar de a literatura internacional já diferenciar os “younger old” dos “oldest old” (Key &
Culliney, 2018: 60) e teorizar acerca do espaço ocupado pela “quarta idade” na conceção de envel-
hecimento (Gilleard & Higgs, 2010), temática dotada de uma multidimensionalidade não redutível a
critérios de idade, a CRP ainda mantém a expressão “terceira idade” nos art. 67.º, n.º 2, al. b e 72.º n.º
2, consubstanciando, inclusivamente, tal expressão, a epígrafe deste último preceito. Desde a redação
por mão do legislador constituinte originário, em abril de 1976, até ao presente, ambos os precei-
tos foram já, várias vezes, objeto de alterações. Toda a evolução verificada no campo da produção
científica talvez torne os portugueses credores da atualização da expressão “terceira idade” numa
porvindoura revisão constitucional.
5
O complemento solidário para idosos foi criado através do DL (Decreto-Lei) n.º 232/2005, de
29 de dezembro.
6
O Estatuto do Cuidador Informal foi aprovado pela Lei n.º 100/2019, de 6 de setembro.
7
O regime de acolhimento familiar de idosos e adultos com deficiência encontra-se discipli-
nado pelo DL n.º 391/91, de 10 de outubro.
8
O regime das diretivas antecipadas de vontade consta da Lei n.º 25/2012, de 16 de julho.
9
O regime jurídico do maior acompanhado foi criado pela Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto,
eliminando os institutos da interdição e da inabilitação previstos no CC.
10
Art. 156.º do CC (Código Civil) – DL n.º 47344/66, de 25 de novembro, na sua mais recente
versão.
11
Nas projeções de população residente, de 31 março de 2020, elaboradas pelo INE (Instituto
Nacional de Estatística), é descrito um cenário de potencial diminuição da população portuguesa de
10,3 para 8,2 milhões de pessoas entre 2018 e 2080 (INE, Projeções de População Residente : 2018-
2080, 2020). Esse estudo acrescenta que o número de jovens apresentará um decréscimo de 1,4 para
cerca de 1,0 milhões, ao passo que o número de pessoas com mais de 65 anos tenderá a aumentar dos
2,2 para os 3,0 milhões (ibidem). Em resultado, alerta a projeção, [o] índice de envelhecimento em Portugal
quase duplicará, passando de 159 para 300 idosos por cada 100 jovens, em 2080, em resultado do decréscimo da
população jovem e do aumento da população idosa (ibidem). Como se não bastasse, espera-se que a popula-
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nosso país, as pessoas idosas vivem hoje mais anos e as estatísticas mostram uma
tendência de subida no número de pessoas desta faixa etária muito superior
à do número dos jovens e das pessoas em idade ativa. Este desfasamento pode
ser reequilibrado mediante uma aposta em incentivos à natalidade e em políticas
migratórias que facilitem a entrada de estrangeiros no nosso país. Até que tais
medidas produzam efeito dista, não obstante, um hiato temporal em que o Estado
verá desafiada a sua capacidade de resiliência, vendo-se na difícil tarefa de gerir e
alocar os recursos disponíveis, que poderão não ser suficientes para corresponder
às expectativas que os cidadãos dele esperam em termos de resposta
12
. Como
se não bastasse, o paradigma de família tradicional apresenta-se cada vez mais
esbatido
13
. Fenómenos como o divórcio, casais sem filhos, casais recompostos,
unidos de facto
14
e relações de parentesco que encontram mais força no vínculo
jurídico que propriamente na relação de convivência, são uma realidade que existe
no nosso país e que abala os alicerces da conceção de um núcleo familiar unido e
onde existe reciprocidade e mútua interajuda dos seus elementos.
A longevidade crescente, assente num estilo de vida mais saudável, que
acompanha o progresso da medicina e que no futuro muito se relacionará com a
inovação no campo tecnológico, permitirá às pessoas, tanto quanto possível, terem
uma vida mais autónoma e independente da estrutura familiar ou para-familiar
que lhes é mais próxima. Mas se quando somos novos a questão da doença ocupa
um espaço muito diminuto no pensamento geral, à medida que a idade avança
crescem os receios de se ficar só e de não ter ninguém que auxilie e apoie na satisfação
das necessidades provocadas pela progressiva vulnerabilidade
15
. Verificando-se
uma resposta deficitária num dos dois grandes pilares de salvaguarda e suporte
da pessoa idosa – o Estado e a família – agudiza-se a premência em discutir o
tema da necessidade de cuidados em fim de vida por forma a encontrar-se
soluções alternativas que possam dar uma resposta satisfatória à pessoa que se
ção em idade ativa, isto é, com idade compreendida entre os 15 e os 64 anos, decresça de 6,6 para 4,2
milhões de pessoas (ibidem).
12
Pense-se, desde logo, na pressão que sistemas como o da segurança social e da caixa geral de
aposentações sofrem em face de uma situação demográfica como a referida. Bem atentam RIBEIRO
DE ALBUQUERQUE e MARGARIDA PAZ que [a]ntes de ser filosófico, social ou jurídico, o envelhecimen-
to das populações e a resposta social possível começa por ser um problema de recursos, cada vez mais tormentoso
(Albuquerque & Paz, 2018: 16).
13
Sobre uma perspetiva de evolução da família nos países da OCDE, atente-se para o estudo
promovido por essa instituição in OECD. (2012). The Future of Families to 2030. OECD Publishing.
14
Na análise global da situação demográfica em 2019 do INE, constatou-se que [c]erca de 56,8%
dos nascimentos ocorreram fora do casamento, 38,3% com coabitação dos pais e 18,5% sem coabitação dos pais
(INE, Estatísticas Demográficas - 2019, 2020: 12).
15
Como nos referem GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA [o]s direitos das pessoas idosas
assumem tanto mais importância quanto é certo que os progressos nas condições de vida e nos cuidados de saúde
vão prolongando a esperança média de vida, ampliando por conseguinte o tempo entre o abandono da vida activa
e o fim da vida (Canotilho & Moreira, 2014: 884).
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vê na provecta idade. A pessoa idosa carecida de cuidados pode deparar-se com
um contexto situacional de falta de vagas numa instituição pública ou do setor
social de apoio à velhice. Os seus rendimentos, que podem traduzir-se apenas na
sua pensão reforma, podem mostrar-se insuficientes para custear a sua estadia
num lar ou numa estrutura residencial para idosos do foro privado, muito menos
para contratar apoio ao domicílio, vinte e quatro horas por dia, sete dias por
semana. Com ou sem um núcleo familiar alargado, muitos são os idosos que não
querem importunar os seus mais próximos, pelos transtornos que podem trazer
às vidas destes, que moram longe, por vezes já bastante ocupados com o trabalho
e com os filhos, isto para não falar na vergonha de terem que pedir judicialmente
alimentos aos descendentes (art. 2009.º do CC), hipótese que nem sequer, para
muitos, é tida em consideração, ainda para mais se também os filhos se virem
numa situação económica delicada, como se disse, com os seus próprios filhos
para criar e com contas e empréstimo da casa para pagar. Se aqueles dotados de
avultado património e elevados rendimentos vêm garantida a independência e o
fácil acesso a cuidados prestados por privados, já os desvalidos de fortuna têm que
se governar com as suas prestações de velhice e com o património que dispõem,
confiando que a resposta pública colmatará o que a consciência geral reputa
como necessário a uma subsistência condigna. Com o vaticínio de tão grandes
níveis de envelhecimento, um quadro de progressiva normalização e indiferença
relativamente ao problema da velhice, que se vai acentuar, é algo que não se pode
desconsiderar e que a acontecer revelaria uma sociedade que enriquecendo nuns
pontos muito fica a perder noutros. Na esperança de que os nossos postulados
constitucionais não se vejam depauperados, no futuro, por uma lógica de “cada
um por si”, urge trabalhar, no presente, no sentido de facultar e dar a conhecer
a estas pessoas instrumentos legais que podem responder às suas necessidades.
Às novas gerações é possível o fácil acesso a diplomas legais pela via telemática o
que permite a estas, se assim o quiserem, inteirar-se do real alcance dos contratos
que pretendem celebrar e vicissitudes associadas. Tal constatação é inextensível
a pessoas mais idosas que, porventura desinformadas, não sabem o que é uma
doação modal, não sabem distinguir um herdeiro de um legatário, que dizem que
o que estão a celebrar é o que é porque alguém lhes disse que era ou porque é a
mais próxima expressão que conhecem para designar o que procuram realizar.
Não será o momento de o legislador português tipificar um contrato
oneroso com vista à prestação de cuidados vitalícios? É aqui que se situa este
escrito. Não deveria existir uma figura contratual de direito privado tipificada e
que possibilitasse o aproveitamento do património existente para o usar como
contrapartida do recebimento de cuidados vitalícios? Situação similar acontece no
contrato de renda vitalícia (art. 1238.º e segs. do CC), que origina de um dos lados
da relação contratual a obrigação de pagar uma renda vitalícia, só que neste caso
seriam prestados os cuidados e o auxílio reclamados pelas normais fragilidades
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físico-motoras e debilidades próprias da larga idade. Deverá permanecer apenas a
margem de liberdade conferida pelo art. 405.º do CC para as partes ajustarem um
acordo com vista a esse fim? Neste texto iremos examinar a questão, analisando
expedientes que vêm sido utilizados no campo das liberalidades com vista a fim
equivalente e seus embaraços práticos, faremos uma breve referência ao estado da
arte em ordenamentos propínquos e, por fim, refletiremos em torno da consagração
legal de um novo instrumento contratual no ordenamento jurídico português e
seus desafios.
2. A prestação de cuidados vitalícios na história e no atual CC
A cedência de património com vista ao recebimento de cuidados vitalícios,
como alojamento, alimentação, vestuário e assistência, são fenómenos cujos ecos já
vêm de longe. MARIO ZANA refere que a celebração de acordos com vista a essa
finalidade é uma prática antiga (Zana, 2005: 91)
16
e ANTONIO PERTILE fornece-
nos exemplos claros disso mesmo. Este autor dá-nos a conhecer, entre outras,
a história de um casal que, por altura do ano 1180, entregou os seus bens e a si
mesmos a uma igreja na condição de esta lhes fornecer comida e roupa para o resto
da vida (Pertile, 1893: 574)
17
. Atualmente, o nosso CC não apresenta uma figura
contratual especificamente destinada a esse fim, apesar de o art. 2014.º, n.º 1 desse
diploma admitir expressamente que obrigações alimentares – que incluem, no caso
de maiores, à luz do art. 2003.º n.º 1, tudo o que é indispensável ao sustento, habitação e
vestuário
18
– podem ter por fonte um negócio jurídico
19
.
Porquanto, utilizaremos a expressão cuidados vitalícios porque não queremos
vincular-nos, aprioristicamente, a qualquer expressão que, à luz do CC, nos possa
remeter para alguma realidade legal específica, prevista nesse diploma, e que
pode conflituar com o que se encontra em análise. Por exemplo, a utilização da
16
Refere o autor que [c]edere i propri beni per procurarsi assistenza per il resto dei propri giorni è
pratica antica (Zana, 2005: 91).
17
Cfr. o autor [u]n tal Andrea e sua moglie offrono alla chiesa di Lucca se stessi e i loro beni (intorno al
1180), deponendo sopra l’altare il libro che teneano in mano e la stola, a condizione di avere dalla chiesa stessa,
finchè vivano, vitto e vestito (Pertile, 1893: 574). Com uma exposição elucidativa da história do contrato
de alimentos espanhol veja-se BERENGUER ALBALADEJO in Albaladejo, C. B. (2012). El Contrato de
Alimentos. Alicante: Universidad de Alicante, Facultad de Derecho, Tesis Doctoral, pp. 1-21.
18
À luz do art. 2003.º do CC, [p]or alimentos entende-se tudo o que é indispensável ao sustento, habi-
tação e vestuário (n.º 1), compreendendo, igualmente, a instrução e educação do alimentado no caso de este
ser menor (n.º 2).
19
MOITINHO DE ALMEIDA considera feliz a inovação que o legislador veio trazer, por ter
usado a expressão obrigação alimentar que tenha por fonte um negócio jurídico e não alimentos contra-
tuais, porque, como refere o autor, os alimentos não-legais nem sempre são contratuais, como é o caso, por
exemplo, do legado de alimentos (arts. 2073 e 2273), em que a obrigação alimentar emerge de negócio jurídico
(testamento), sem todavia emergir de contrato (Almeida, 1968: 111).
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expressão alimentos transporta-nos para o instituto que os tem por nome no CC,
digam-se, os art. 2003.º e segs. desse diploma. A palavra assistência pode confundir-
se com aquele dever que existe no âmbito familiar, vejam-se as referências
previstas nos art. 1672.º, 1675.º e 1874.º
20
. Por seu turno, a palavra acompanhamento
remete-nos para a recente alteração à lei civil, que veio substituir os institutos da
interdição e da inabilitação. A utilização da expressão cuidados vitalícios furta-se aos
inconvenientes de poder ser diretamente associada a um desses contextos legais
e deixa em aberto a possibilidade de modelação do objeto da prestação, assunto
que a seu tempo iremos abordar. Aquele que cuida de alguém dele trata e dele
zela e tal pode ser feito de muitas formas, isto é, o objeto da prestação poderá
ter conteúdo vário apesar de concorrer para a realização do fim último que é a
prestação de cuidados vitalícios
21
, cuidados esses que, se prolongando durante
a vida de uma pessoa, tanto podem apresentar uma amplitude máxima capaz de
abarcar um plus à típica obrigação alimentar, como prevista no art. 2003.º, como
podem envolver um conteúdo diverso – pense-se na mera companhia e auxílio
na realização de tarefas quotidianas como é o caso da toma de medicação, de
trabalhos domésticos como confecionar refeições, lavar a roupa e passá-la a ferro,
zelar o jardim e quintal, acompanhamento a instituições públicas, consultas médias
e farmácia, tarefas que se podem tornar, também elas, dispendiosas em termos de
tempo para o prestante e que, obviamente, podem representar para o beneficiário
uma vantagem patrimonial.
3. A disposição testamentária e a frustração da expectativa de facto
Perante um cenário de progressivo declínio, fruto do avançar da idade, é
compreensível que uma qualquer pessoa queira beneficiar quem lhe proporcionou
companhia e dela cuidou nos últimos anos de vida. Através do testamento, a
pessoa idosa poderá expressar a sua gratidão e reconhecimento pelo esforço e
dedicação despendidos por quem lhe prestou os cuidados, instituindo tal pessoa
como seu sucessor, herdeiro na totalidade ou numa quota do seu património ou
legatário de certos bens ou valores determinados (art. 2030.º, n.º 1 e 2 do CC). O
testador pode expressar livremente a sua vontade, inclusivamente poderá instituir
20
Em conformidade com o art. 1675.º, n.º 1 do CC, no âmbito conjugal, [o] dever de assistência
compreende a obrigação de prestar alimentos e a de contribuir para os encargos da vida familiar. Já em atenção
ao art. 1874.º, n.º 2 do CC, no âmbito paterno-familiar, [o] dever de assistência compreende a obrigação
de prestar alimentos e a de contribuir, durante a vida em comum, de acordo com os recursos próprios, para os
encargos da vida familiar.
21
Podíamos, também, utilizar a expressão manutenção vitalícia, mas temos em crer que por si
só, aqueloutra pode ser mais facilmente associável ao que está aqui em análise, para além de que já
existe um dever de manutenção, assim mesmo designado, na epígrafe do art. 1043.º do CC, a respeito
da coisa locada.
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quem lhe assistiu na velhice como único e universal herdeiro, não obstante essas
manifestações de vontade sempre poderem ser reduzidas (art. 2168.º e segs. do CC),
caso existam herdeiros legitimários (art. 2156.º e segs. do CC), ou até mesmo nulas,
se cairmos no âmbito de um dos casos de indisponibilidade relativa (art. 2192.º e
segs. do CC). O nosso objetivo não é vaguear pelos meandros do direito sucessório,
discorrendo acerca dos tipos de sucessão e dos diversos aspetos conexionados
com cada um deles. Pretende-se, outrossim, chamar a atenção para os embaraços
proporcionados por realidades em que este natural desenrolar de acontecimentos
– prestação de cuidados/gratificação por via de testamento – se vê subvertido.
O fenómeno sucessório despoleta-se aquando da morte do de cujus, é nesse
momento que é aberta a sucessão e os sucessores são chamados à titularidade das
suas relações jurídicas (art. 2031.º e segs. do CC). Acontece que os nossos tribunais
viram já, algumas vezes, enquadramentos fácticos levados por mão do peticionário
autor em que as disposições testamentárias são trazidas num circunstancialismo
anterior à própria morte, figurando num hipotético acordo de cuidados vitalícios
por disposição testamentária a favor de quem os presta
22
, assim como em quadros
em que havendo prestação de cuidados, é indicado pelo beneficiário dos mesmos
que à sua morte aqueles que os prestam serão recompensados por via testamentária,
criando nestes últimos a convicção de que tal se irá efetivar
23
.
Por certo, existirão muitos casos em que são prestados os cuidados e a
companhia e que, à morte do beneficiário dos mesmos, aquele que os prestou vê-se
instituído legatário ou herdeiro por força do testamento daqueloutro. O problema
surge quando aquele que se vê beneficiado pelos cuidados, de um momento para
o outro, ainda em vida, deles prescinde, revogando ou alterando o testamento que
possa já existir, não mais figurando o prestante dos mesmos como herdeiro ou
legatário, ou quando esta alegada intenção que este ia manifestando não vem a
ser efetivamente plasmada no testamento. Pergunta-se, em que posição fica este
prestador de cuidados?
O testamento configura um negócio jurídico unilateral que é livremente
revogável (art. 2179.º do CC). O art. 2311.º do CC determina mesmo que a faculdade
de revogar o testamento não pode ser objeto de renúncia por parte do testador, o
que quer dizer que o prestador de cuidados não mais pode ter do que uma mera
expectativa de facto de sucessão nas circunstâncias acordadas, visto que o testador
sempre poderá modificar ou revogar o seu testamento
24
.
22
A esse respeito vejam-se os ac. 3755/15.4T8LRA.C2.S1 de 30-04-2019 do STJ, ac. 03B4157 de
26-02-2004 do STJ, ac. 04A3864 de 30-11-2004 do STJ e ac. 8495/2006-1 de 11-10-2006 do TRL.
23
A esse respeito vejam-se os ac. 201/09.6TBVRM-A.G1.S1 de 08-09-2015 do STJ e ac.
1307/07.1TBFAF.G2 de 11-02-2016 do TRG.
24
Como nos refere LEITE DE CAMPOS [n]o âmbito das sucessões testamentária e legítima, os de-
signados não têm qualquer direito ou expectativa jurídica. Terão só uma expectativa de facto, uma esperança de
virem a receber os bens. Esperança totalmente dependente da vontade do titular desses bens, que poderá iludir
as esperanças dos herdeiros legítimos, fazendo um testamento, ou lograr as esperanças dos herdeiros testamen-
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A pergunta que sucede é o que pode esta pessoa, que viu frustrada a sua
expectativa, fazer no sentido de se ver restituída por aquilo que prestou? A
invocação de existência de um contrato de trabalho confronta, desde logo, na
questão da retribuição, elemento essencial desse contrato à luz dos art. 1152.º do
CC, 11.º e 258.º e segs. do CT (Código do Trabalho)
25
. A prestação a que um
trabalhador tem direito, em contrapartida do seu trabalho, deve ser-lhe realizada
de forma regular e periódica, em dinheiro ou em espécie (art. 258.º, n.º 2 do CT).
Ora, a instituição como herdeiro ou legatário num testamento não pode ser
considerada uma “retribuição” porque não ostenta as mencionadas características.
À alegação de presença de um contrato de prestação de serviço, que não se
subsumirá numa das três modalidades especialmente previstas no CC (art. 1155.º
do CC), sempre se poderão erguer vozes na defesa de que a disposição testamentária
é, como já se viu, livremente revogável e que a prestação de serviço se presume
gratuita em conformidade com os art. 1154.º, 1156.º e 1158.º, n.º 1, todos do CC
26
.
Por seu turno, a sucessão contratual não evidencia no nosso quadro jurídico a
amplitude que se lhe pode apontar noutros ordenamentos, contemplando o
legislador português apenas a possibilidade de celebração de contratos sucessórios
nos casos expressamente previstos na lei, cominando os restantes com nulidade
(art. 2028.º, n.º 2 do CC). A invocação do enriquecimento sem causa (art 473.º do
CC) contra o que se viu beneficiário da prestação de cuidados é sempre uma
possibilidade, apesar de a sua aplicação se afigurar subsidiária à luz do art. 474.º do
CC, e de, para o efeito, terem que se verificar um conjunto cumulativo de três
pressupostos
27
. Exigências que, perante o circunstancialismo vertente podem não
se verificar, claudicando as hipóteses de aplicação do instituto, claudicando as
hipóteses de a pessoa se ver restituída. Alertar que não é de descartar liminarmente
a existência de um verdadeiro acordo entre as partes, que pode ter existido e até
mesmo sido reduzido a escrito. Podemos estar em presença de um contrato nulo,
que, o sendo, vê aplicável disciplina diversa da do instituto do enriquecimento sem
causa, que não será convocável fruto da sua subsidiariedade. Não seria necessário
acorrer, neste caso, a essa fonte de obrigações porque a questão poderia ser
tários, revogando ou modificando o testamento já feito (Campos, 2008: 501).
25
Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro, na sua versão mais recente.
26
Pergunte-se o que aconteceria se houvesse pré-morte de quem presta esses cuidados, por-
que, em boa razão, a disposição testamentária só teria lugar se lhe fossem prestados os cuidados
por aquela pessoa até ao falecimento, só por isso é que a prestante de cuidados seria instituída pelo
beneficiário dos mesmos herdeira ou legatária.
27
Explica-nos MENEZES LEITÃO que os pressupostos previstos no art. 473.º, n.º 1 do CC são
tão amplos e genéricos, que seria possível efectuar uma aplicação indiscriminada desta cláusula geral, colocando
em causa a aplicação de uma série de outras regras de direito positivo. Por esse motivo, o nosso legislador de-
cidiu consagrar expressamente no art. 474º a denominada subsidiariedade do instituto do enriquecimento sem
causa, (...) norma que pretende estabelecer que a acção de enriquecimento seja o último recurso a utilizar pelo
empobrecido (Leitão, 2016: 370).
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198 Lusíada. Direito • 27/28 (1.º e 2.º semestre de 2022)
solucionada por aqueloutra via
28
. Feita esta ressalva, no que respeita à prova dos
pressupostos, aquele que alega o enriquecimento de outrem à custa do seu
empobrecimento sem que tenha havido, para o efeito, uma causa que o justifique,
tem que demonstrar que ocorreu o empobrecimento do que se viu negativamente
afetado no património, o enriquecimento daquele que se locupletou à sua custa e a
carência de uma causa que o justifique (art. 342.º, n.º 1 e 473.º do CC)
29
. Os laços
familiares e a realidade vivencial entre o beneficiário dos cuidados e aquele que os
presta podem dificultar a prova dos pressupostos. Enunciámos que a prestação de
cuidados, amplamente considerada, tanto podia envolver uma prestação de
alimentos, como uma prestação que lhe soma um plus ou uma prestação diversa.
Pretendemos dar nota de um problema que se pode gerar não diretamente
relacionado com o conteúdo da prestação, mas com a qualidade pessoal de quem
a realiza. O facto de os cuidados serem prestados por familiar pode catapultar-nos
para o domínio das relações familiares, algo que não será inócuo à procedência, ou
improcedência, do pretendido pelo que se quer ver restituído com fundamento em
enriquecimento sem causa. Os art. 1674.º e 1675.º do CC contemplam,
respetivamente, um dever de auxílio e de assistência recíproca entre os cônjuges, o
art. 1874.º entre pais e filhos e filhos e pais
30
e o art. 2009.º, que abrange todos estes
e outros familiares próximos, faz impender, sobre todos, obrigação de alimentos,
que pode ter sido decretada por via judicial nos termos e na ordem previstos no
28
Para maiores desenvolvimentos a respeito da análise da possibilidade de existência de um
contrato nulo remetemos para SILVA MORAIS que, de forma esclarecedora, aborda a questão in Mo-
rais, D. (Ano 16, n.º 31-32, janeiro/julho de 2019). Direito sucessório e protecção das pessoas idosas.
Lex Familiae – Revista Portuguesa de Direito da Família, pp. 45-69. (em especial pp. 63 e segs.).
29
Não bastará alegar que a causa não existe. Como explica o sumário do ac. 2777/10.6TBPTM.
E1.S1 de 19-02-2013 do STJ, [a] falta de causa da atribuição ou vantagem patrimonial que integra o enrique-
cimento tem de ser alegada e demonstrada por quem invoca o direito à restituição dela decorrente, em conformi-
dade com as exigências gerais sobre os ónus de alegação e prova. A mera falta de prova da existência de causa
da atribuição não é suficiente para fundamentar a restituição do indevidamente pago, sendo necessário provar
que efectivamente a causa falta. No art. 473.º, n.º 2 do CC, o legislador dá-nos a indicação de que [a]
obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente
recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não
se verificou. Sugerimos uma leitura do ac. 0525777 de 07-03-2006 do TRP que analisa, num caso não
relacionado com o agora em discussão – mas que será por nós mencionado adiante – até onde se pode
ir na exigência da prova de ausência de causa. A questão chegou até ao STJ, remetendo-se, também,
para o aresto desse tribunal (ac. 06A2741 de 17-10-2006 do STJ).
30
O legislador consagra um dever de auxílio no art. 1674.º do CC, no âmbito do dever de coo-
peração entre os cônjuges, e, novamente, no art. 1874.º do mesmo diploma a propósito dos deveres
de pais e filhos. Contrariamente à assistência (art. 1675.º, n.º 1 do CC) e aos alimentos (art. 2003.º do
CC), o CC não explica legalmente o que pretende abarcar na palavra “auxílio”. Na doutrina, DUAR-
TE PINHEIRO, em relação às relações paternofiliais, dá conta que dele decorrem obrigações de ajuda e
protecção, relativos quer à pessoa quer ao património dos pais e dos filhos. São obrigações com especial relevo
nos momentos de crescimento, doença e velhice (Pinheiro, 2018: 205). Sobre o dever familiar de cuidar dos
mais velhos veja-se TÁVORA VÍTOR in Vítor, P. (Ano 5, n.º 10, julho/dezembro de 2008). O dever
familiar de cuidar dos mais velhos. Lex Familiae – Revista Portuguesa de Direito da Família, pp. 41-62.
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Os acordos com vista à prestação de cuidados vitalícios, p. 189-233
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catálogo de preceitos relativo às obrigações alimentares. Sendo os cuidados
prestados por uma destas pessoas sempre se poderia contra-alegar a existência de
causa para o enriquecimento que já não seria injusto, visto sobre eles impender
deveres legais e/ou obrigações civis em relação ao beneficiário de cuidados, isto
para não falar também na possibilidade de cairmos no âmbito das obrigações
naturais. Encontrámos, na nossa jurisprudência, um ac. do TRC
31
em que a filha
única de um casal, adotada restrita
32
, abdicou de trabalhar fora de casa, contribuindo
com o seu trabalho para a economia familiar na esperança que o património dos
seus pais, que esta ajudou a enriquecer, fosse mais tarde seu por sucessão,
desconhecendo até à morte do pai a sua condição de adotada restrita. Na decisão
que não reuniu unanimidade dos magistrados, considerou-se que falhando a
expectativa de sucessão, desaparece a causa justificativa do enriquecimento patrimonial dos
pais, pelo que, haveria um enriquecimento sem causa em relação à meação do pai
que faleceu. Aquilo que queremos chamar à atenção é do esclarecimento do
tribunal que este enriquecimento deve ser peneirado das condutas que se inserem
naquilo que é próprio de uma relação familiar. Refere o aresto que, no cálculo do
valor daquilo que foi obtido à custa do empobrecimento da filha, considera-se
apenas o que teria feito por conta de outrem e não também aquilo que, além disso, fez a mais
para seu(s) pai(s) apenas por se estar a movimentar dentro de uma relação familiar, ou seja,
não considerando aquele trabalho que numa sociedade familiar do tipo agrícola e rural com
aquela em que viviam sempre se faz – e se não faria para outrem – mesmo aos domingos,
mesmo em férias. Ora, é precisamente essas condutas que podem estar em causa no
que se encontra em análise. Num outro ac., agora do TRG
33
, considerou-se que [a]
filha que residindo no mesmo edifício em que habitam os pais, que acede ao pedido dos
últimos no sentido de deixar a sua atividade profissional de empregada de balcão para passar
a dedicar-se, exclusivamente, a cuidar dos pais face à idade avançada e aos problemas de
saúde destes, age no cumprimento de uma obrigação natural e, como tal, não lhe assiste o
direito a reclamar da herança aberta por óbito de seus pais o montante das retribuições que
deixou de auferir durante o período de tempo em que deixou de exercer a sua atividade
profissional para passar a cuidar exclusivamente dos pais, no cumprimento daquele pedido.
Não será despiciendo referir, como se vê, que os cuidados podem ser prestados no
cumprimento de uma obrigação natural, facto que pode ser alegado pelo contestante
na ação. As obrigações naturais, tal como definidas pelo art. 402.º do CC, são
aquelas que se fundam num mero dever de ordem moral ou social, cujo cumprimento não
é judicialmente exigível, mas corresponde a um dever de justiça. Trata-se de uma
obrigação cujo cumprimento não é passível de ser exigido pela via judicial, mas
que sendo espontaneamente realizada, isto é, livre de coação, não pode ser repetida,
31
Ac. 1800/01 de 06-11-2001 do TRC.
32
Os preceitos relativos à adoção restrita (art. 1992.º a 2002.º-D do CC) encontram-se atualmen-
te revogados – veja-se o art. 9.º da Lei n.º 143/2015, de 8 de setembro.
33
Ac. 5717/17.8T8VNF.G1 de 20-09-2018 do TRG.
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Paulo Moreira
200 Lusíada. Direito • 27/28 (1.º e 2.º semestre de 2022)
com exceção dos casos em que o devedor não tem capacidade para efetuar a
prestação, tal como decorre do art. 403.º do CC. O preceito definitório convocado
fornece apenas uma linha de orientação e não um elenco taxativo de obrigações
consideradas naturais. Esta obrigação fundada num dever moral ou social,
casuisticamente apreciado em face do contexto existente entre quem presta e quem
beneficia, e cuja realização pelo primeiro ao segundo se baseia numa ideia de
consciência de que tal é devido em virtude de um imperativo de justiça, possibilita
certa margem para que nela se enquadre uma prestação de cuidados sempre que
entre o beneficiário dos mesmos e o prestante exista uma relação de convivência
relevante para esse efeito. Pense-se, quiçá, nos laços familiares colaterais que apesar
de legalmente distantes no grau, encontram estreiteza relacional em virtude do
convívio permanente ou coabitação, na união de facto em que, no fundo, os unidos
vivem como pessoas casadas
34
, na especial relação que possa existir entre afilhado
e padrinho
35
, enfim, pense-se naqueles casos em que releva uma forte presença de
interajuda mútua e proximidade que justifiquem que mais do que se estar em
presença de um dever de ordem moral ou social se está perante um verdadeiro
dever de justiça
36, 37
. Se se considerar que a prestação de quem oferecia cuidados
34
A Lei n.º 7/2001, de 11 de maio, na sua mais recente versão, contempla medidas de proteção
das uniões de facto, mas não encontrámos no seu catálogo de preceitos nenhum comando direto que
faça impender sobre os unidos um dever de assistência como aquele previsto no art. 1675.º do CC
no âmbito conjugal e, certo é que, no art. 2009.º do CC, o unido de facto não consta também como
um dos possíveis obrigados a alimentos, encontrando-se apenas prevista no art. 2020.º, n.º 1 do CC a
indicação que [o] membro sobrevivo da união de facto tem o direito de exigir alimentos da herança do falecido,
prevendo, logo em seguida, o n.º 2 que esse direito caduca se não for exercido nos dois anos subsequentes
à data da morte do autor da sucessão. As contribuições dos unidos de facto para a sua vivência conjunta
podem ver-se, em muitos casos, de diferente monta, por exemplo, por virtude de diferenças a nível
salarial. Parece-nos que perante um cenário de rutura no relacionamento, aquele que prestava cui-
dados ao companheiro não pode vir alegar a existência de um enriquecimento sem causa, porque os
cuidados prestados, apesar de não se traduzirem no cumprimento de deveres jurídicos como aqueles
que impendem sobre os cônjuges, parecem-nos poderem considerar-se realizados no cumprimento
de uma obrigação natural que, como tal, se mostra irrepetível (art. 403.º do CC).
35
Veja-se o ac. 1307/07.1TBFAF.G2 de 11-02-2016 do TRG que veio considerar que [a]s relações
de afecto reciproco existentes por vários anos entre afilhado e padrinho, e, bem assim, o amparo e a protecção
conferida pelo segundo ao primeiro durante vários anos, justifica concluir pela existência de uma obrigação
natural em sede de prestação de alimentos do afilhado ao padrinho.
36
Explica-nos ALMEIDA COSTA que [p]ara se detectarem as obrigações naturais, fora dos casos
directa ou acidentalmente referidos na lei, terá de atender-se às ideias, conceitos e necessidades sociais predomi-
nantes, que, de resto, são temporal e espacialmente mutáveis, acrescentando que um crepúsculo de consciência
meramente subjectivo não bastará para justificar uma obrigação natural. Seria ir demasiado longe. Importa que
esse dever de consciência corresponda às concepções sociais, que se mostre objectivamente aprovado e tido como
normal (Costa, 2001: 157-158).
37
Encontrámos manifestação clara de que os alimentos podem ser prestados no cumprimento
de uma obrigação natural no art. 495.º, n.º 3 do CC, preceito que prevê que têm direito a indemnização os
que podiam exigir alimentos ao lesado ou aqueles a quem o lesado os prestava no cumprimento de uma obrigação
natural. Ensinava ANTUNES VARELA que nesta previsão legal estão abrangidos os parentes próximos
(não compreendidos no art. 2009.º) que tenham vivido com o lesado ou que este tenha auxiliado, a mulher com
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foi realizada no cumprimento de uma obrigação natural caímos dentro da
exceção à aplicação do instituto do enriquecimento sem causa prevista nos art.
403.º e 476.º, n.º 1 do CC
38
.
Mesmo se ultrapassando os embaraços anteditos, sobressai o problema da
prova de que houve empobrecimento do prestador de cuidados.
Em suma, verifica-se que o recurso a expedientes de direito sucessório
com vista à obtenção de cuidados vitalícios cria expectativas de facto acerca de
um circunstancialismo que depois pode acabar por não se verificar dada a livre
revogabilidade dos testamentos ou porque a pessoa que iria instituir quem lhe
presta cuidados herdeiro ou legatário até podia ter esse desejo, mas nunca o
chegou a efetivar, por exemplo, em virtude da morte ter chegado mais cedo do
que esperava. O ónus da prova e a proximidade relacional entre o prestador de
cuidados e quem deles beneficia pode ser um obstáculo à aplicação do instituto
do enriquecimento sem causa, que não deixa de se ver já, um instituto de fim de
linha (aplicação subsidiária)
.
4. As doações modais e seus constrangimentos
Ainda no campo das liberalidades, encontramos a prestação de cuidados
vitalícios inserida em contratos de doação modal, com ou sem reserva de usufruto,
em que sobre o donatário impende o encargo de prestar cuidados vitalícios ao
doador
39
. Até onde nos foi possível, divisamos vários acórdãos sobre este tipo de
operação, sendo que as questões suscitadas se prendem maioritariamente com
vicissitudes relacionadas com o cumprimento e incumprimento do encargo pelo
quem ele tenha vivido maritalmente, o criado que envelheceu ou se inutilizou ao serviço do patrão, etc. Haverá
obrigação natural na prestação de alimentos quando os laços de sangue, as relações de convívio ou os serviços
prestados ao lesado imponham como um dever de justiça o encargo da sustentação, habitação e vestuário da
pessoa a quem são facultados (Varela, 2000: 726-727).
38
Da prestação de cuidados podem ser, todavia, autonomizáveis certos atos ou condutas que
não se reconduzam a essa finalidade. O já referenciado ac. 1307/07.1TBFAF.G2 de 11-02-2016 do TRG
fez um trabalho de deslinde entre aquelas prestações mais vulgares, correntes e quotidianas em sede de
prestação de alimentos (lato sensu), que em razão das relações de bastante proximidade, de afecto, de convício e
de ligação padrinho/afilhado existentes entre A e Réu integram a previsão do artº 402º, do CC, daquelas que,
prima facie inabituais e algo extraordinárias [em sede de prestação de alimentos], se justifica/impõe abordar em
separado, as quais relacionadas, no caso, com o fornecimento de lenha e a construção de um muro.
39
Em anotação ao art. 2014.º do CC, PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA dão-nos conta que
acontece, com alguma frequência, que pessoa já idosa, com alguns meios de fortuna, mas sem aptidão ou sem
saúde para administrar o seu património, faz doação dos seus bens a uma instituição particular de assistência,
com o encargo para a donatária de lhe prestar alimentos, enquanto a doadora viva for (Lima & Varela, 1995:
605). Também REMÉDIO MARQUES dá conta que não raras vezes, após a aposentação, estas pessoas alie-
nam gratuitamente bens a terceiros – maxime, instituições de solidariedade social ou sociedades comerciais, que
exploram lares ou residências para idosos – com o encargo de estes terceiros os manterem e prestarem os demais
cuidados de subsistência até à morte dos doadores (Marques, 2007: 193).
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202 Lusíada. Direito • 27/28 (1.º e 2.º semestre de 2022)
donatário
40
, com a reserva de usufruto
41
, com a interpretação da cláusula modal
42
, com o quantum da liberalidade em razão das regras de direito sucessório
43
e
com a natureza do contrato celebrado
44
e seu impacto na impugnação pauliana
45, 46
. Apesar de nas notas de pé de página poder haver repetição dos acórdãos,
que abordam mais do que um dos anteditos tópicos, duas ilações podemos tirar:
o número de arestos revela frequência na prática destes convénios e a dispersão
temporal, evidenciada pelas datas das decisões, mostra que este é um assunto na
ordem do dia.
Reflitamos acerca de alguns aspetos dos quais pode defluir a fragilidade
deste instrumento.
4.1. O incumprimento do encargo
O problema com que a nossa jurisprudência mais se defronta, atendendo
ao resultado da nossa pesquisa, relaciona-se com o incumprimento do encargo
pelo donatário e as prerrogativas que dispõe o doador para reagir contra tal
desrespeito.
Na doação pura e simples procura o doador, imbuído de um espírito de
generosidade, beneficiar outrem com uma vantagem patrimonial, à custa do seu
correspondente empobrecimento (art. 940.º, n.º 1 do CC). À doação pode ser,
todavia, aposto um encargo (art. 963.º, n.º 1 do CC), que [o] donatário não é obrigado
a cumprir (...) senão dentro dos limites do valor da coisa ou do direito doado (art. 963.º,
n.º 2 do CC). Quer isto dizer que este até pode cumprir o encargo para lá do que
40
Ac. 01A4049 de 15-01-2002 do STJ, ac. 2838/17.0T8BCL.G1 de 17-01-2019 do TRG, ac.
614/13.9TBPTM.E1 de 20-10-2016 do TRE, ac. 3363/13.4TGTVD.L1-1 de 10-05-2016 do TRL, ac.
082060 de 24-03-1992 do STJ, ac. 463/13.4TBFLG.P1 de 14-03-2016 do TRP, ac. 1574/13.1TBFIG.C2 de
02-04-2019 do TRC, ac. 1574/13.1TBFIG.C2.S1 de 03-10-2019 do STJ, ac. 122/10.0TBEPS.G1 de 12-07-
2011 do TRG, ac. 9/05.8TBGDM.P1 de 08-09-2009 do TRP, ac. 4590/06.6TBMAI.P1 de 08-07-2010 do
TRP, ac. 109/07.0TBPCR.G1 de 22-03-2011 do TRG, ac. 15/09.3T2AND.C1.S1 de 01-07-2010 do STJ,
ac. 731/90 de 07-03-1991 do TRE e Ac. 1514/04 de 17/06/2008 do TRC.
41
Ac. 9/05.8TBGDM.P1 de 08-09-2009 do TRP.
42
Ac. 9/05.8TBGDM.P1 de 08-09-2009 do TRP, ac. 190/16.0T8BCL.G1.S2 de 04-07-2019 do STJ,
ac. 190/16.0T8BCL.G1 de 11-07-2017 do TRG, ac. 06B2349 de 02-11-2006 do STJ, ac. 4590/06.6TBMAI.
P1 de 08-07-2010 do TRP e ac. 15/09.3T2AND.C1.S1 de 01-07-2010 do STJ.
43
Ac. 21/11.8TBAVV-A.G1 de 24-09-2015 do TRG.
44
Ac. 314/12.7TBTBU.C1 de 10-02-2015 do TRC, ac. 0633771 de 14-09-2006 do TRP e ac.
1588/05.5TBVNO.C1 de 27-02-2007 do TRC.
45
Ac. 955/14.8TBCLD.C1 de 08-03-2016 do TRC e ac. 322-C/2002.C1 de 24-04-2012 do TRC.
46
O ac. 654/10.0TBSXL-7 de 13-07-2017 do TRL, não se debruçando sobre um contrato de doação
modal, aborda a problemática de uma doação celebrada num contexto de prestação de cuidados ao doador em
que se analisa a existência de um cenário de usura (art. 282.º do CC). A possibilidade de usura é também
analisada no ac. 1579/14.5TBVNG.P1.S1 de 23-06-2016 do STJ em que, entre o mais, ocorreu uma
cessão gratuita de meação e de quinhão hereditário, tendo sido imposto à donatária o encargo de prestar assis-
tência para o seu bem-estar e saúde (da doadora).
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Os acordos com vista à prestação de cuidados vitalícios, p. 189-233
Lusíada. Direito • 27/28 (1.º e 2.º semestre de 2022) 203
se viu enriquecido
47
, mas é-lhe dado o direito de se recusar a prestar no excesso
do que se viu patrimonialmente incrementado. Não estaremos, no contrato em
análise, perante um cenário de prestação/contraprestação próprio dos convénios
onerosos sinalagmáticos, um encargo é isso mesmo, um dever acessório que o
donatário se comprometeu a respeitar em função do ato de liberalidade que lhe
foi dirigido pelo disponente com um animus de generosidade
48
.
Aceitando a doação (art. 945.º do CC), sobre o donatário impenderá o dever
de respeitar a determinação do doador. Em face do desrespeito daquilo a que
voluntariamente se comprometeu, faculta a lei àquele último um conjunto de
mecanismos a que pode acorrer. À luz do art. 965.º do CC o autor da atribuição
donativa poderá exigir do donatário o respeito do modo mediante a via judicial
(art. 817.º e segs. do CC). É-lhe dada, igualmente, a possibilidade de solicitar
judicialmente a resolução da doação, fundada em incumprimento do encargo,
se esse direito lhe for conferido pelo contrato, em conformidade com o art. 966.º
do CC
49
. Existe ainda uma terceira hipótese que é a de revogação da doação
com fundamento na ingratidão do donatário (970º e 974º do CC), sendo que,
para tal, o doador terá o ónus demonstrativo (art. 342.º do CC) de que uma das
circunstâncias daquele conjunto taxativo e circunscrito previsto nos art. 2034º e
2166º do CC se verificou.
Qual é o problema que se pode apontar neste âmbito? A doação, na forma
que reveste (art. 947.º do CC), pode não contemplar a previsão da possibilidade
de resolução em caso de incumprimento do encargo, seja por motivo de incúria
ou outro
50
. O que quer dizer que, ao doador, em face do desrespeito do encargo,
47
Como nos explicam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, a formulação do Código português
favorece bastante a tese de que, cumprindo o donatário espontaneamente o encargo que, contra a previsão dos
contraentes, exceda o valor da prestação do doador, a sua prestação quanto ao excesso constituirá, em princípio,
o cumprimento de uma obrigação natural (art. 402.º) (Lima & Varela, 2010b: 270). PALMA RAMALHO,
por sua vez, considera que [a]ctuando para além do devido, o donatário está, quando muito, a cumprir uma
obrigação natural, para com o doador, ou então a realizar, ele próprio, uma liberalidade (de estrutura unilateral),
em favor do beneficiário do encargo (Ramalho, 1990: 710).
48
O modo, explicam-nos PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, é, por conceito, incompatível
com a ideia de onerosidade. Nos contratos onerosos, as prestações que incumbem às partes constituem as suas
prestações correspectivas – são partes integrantes e obrigatórias do negócio realizado –, enquanto que, nos
contratos gratuitos, os encargos (modo) impostos ao beneciário, sendo meras cláusulas acessórias, funcionam
como simples limitações ou restrições à prestação do disponente (liberalidade) e não como o seu correspectivo
(Lima & Varela, 2010b: 269).
49
PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA consideram que [a] solução da resolução auctoritate
judicis explica-se pelo carácter especial do modo, que não afecta a essência da liberalidade, podendo o doador
querer manter esta, mesmo que o modo não tenha sido cumprido (Lima & Varela, 2010b: 273). A este pro-
pósito veja-se ainda na doutrina BAPTISTA LOPES (Lopes, 1970: 123-124) e PALMA RAMALHO
(Ramalho, 1990: 703).
50
Explica MOTA PINTO que tenha o encargo valor patrimonial ou moral, parece inferir-se do artigo
966.º que o doador ou os seus herdeiros poderão «pedir a resolução» de toda a doação, apenas quando, por in-
terpretação do contrato, esse direito lhes seja conferido. Não bastará, portanto, provar, por qualquer meio, que a
cláusula modal foi causa impulsiva da doação, isto é, que o doador a não teria feito se soubesse que o inadimple-
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apenas se torna possível exigir o seu cumprimento ou enveredar caminho pela
revogação por ingratidão do donatário. Poderia o doador, cujo encargo que
estipulou consiste na prestação de cuidados vitalícios – cujo conteúdo se pode
traduzir numa prestação de alimentos lato sensu –, alegar o fundamento previsto
no art. 2166.º, n.º 1, al. c do CC – [t]er o sucessível, sem justa causa, recusado ao autor
da sucessão ou ao seu cônjuge os devidos alimentos. O art. 2011.º do CC faz impender
sobre o donatário a obrigação legal de alimentos, na medida em que os bens doados
pudessem assegurar ao doador meios de subsistência (n.º 1), mas contra a procedência
da invocação deste fundamento estão o facto de se ter de verificar uma situação
de carência do alimentando (art. 2004.º do CC), de esta obrigação alimentar recair
sobre o donatário na proporção do valor da doação (2011.º, n.º 2 do CC) – não nos
esqueçamos do que dissemos acima, na doação quer-se beneficiar o donatário e
não prejudicá-lo – findo o qual retorna-se ao rol de obrigados consagrado no art.
2009.º do CC e a jurisprudência ter-se já pronunciado pela necessidade de prévia
sentença do tribunal que obrigue o donatário a alimentos e que este incumpra tal
determinação
51
.
Em suma, deste conjunto de três potenciais mecanismos, pode acontecer
que apenas o da exigência judicial do cumprimento do modo esteja ao alcance
do doador
52
.
4.2. A reserva de usufruto
Por si só, a doação de um bem com reserva de usufruto configurará uma
doação pura. O seu caráter modal advém, como vimos, do facto de o donatário
ficar adstrito ao cumprimento de um encargo. São duas realidades distintas o facto
de a doação ser modal e ser feita sob reserva de usufruto, ambas perfeitamente
passíveis de ocorrer, na medida em que o legislador expressamente as consagra
mento teria lugar; é necessário que o direito de resolução lhe seja conferido pelo contrato e, portanto, corresponda
a uma vontade real susceptível de desentranhar a sua eficácia em sede interpretativa (Pinto, 2012: 587). A
este propósito veja-se ainda, na doutrina, BAPTISTA LOPES (Lopes, 1970: 122), PIRES DE LIMA e
ANTUNES VARELA (Lima & Varela, 2010b: 272-273) e PALMA RAMALHO (Ramalho, 1990: 702).
51
Veja-se o ac. 1514/04 de 17/06/2008 do TRC. Segundo o sumário do aresto I – A ingratidão do
donatário não decorre do mero facto de ser herdeiro do doador e deste ter direito a haver alimentos da sua parte.
II – A revogação da doação por ingratidão supõe sentença que condene o donatário no pagamento de alimentos
ao doador e a recusa daquele na sua concessão. A justificação encontra-se presente na fundamentação do
mesmo: a revogação de uma doação é um acto de gravidade não despicienda; assim sendo não poderá ser tomado
sem que seja patenteada de uma forma iniludível a necessidade de alimentos do donatário e a recusa da respectiva
concessão por parte do doador.
52
Mesmo que a resolução tivesse sido conferida pelo contrato, como reação perante o que
incumpre o encargo, sendo esta suscitada em tribunal, não deixa o doador de ter que fazer prova de
que houve desrespeito do encargo. Por seu turno, poderá o donatário (réu) defender-se, provando
que esse incumprimento não derivou de sua culpa. A este respeito veja-se o ac. 731/90 de 07-03-1991
do TRE.
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Os acordos com vista à prestação de cuidados vitalícios, p. 189-233
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– a possibilidade de o doador reservar para si, ou para terceira pessoa, o usufruto
dos bens doados encontra-se expressamente prevista no art. 958.º, n.º 1 do CC. O
usufruto abrangerá, como determina o art. 1449.º do CC, as coisas acrescidas e todos
os direitos inerentes à coisa usufruída.
A conservação do usufruto na esfera do doador, beneficiário de cuidados,
até ao seu falecimento (art. 1476.º, n.º 1, al. a do CC), é um expediente importante,
porque permite que terceiros tenham, em relação ao património do idoso, uma
perceção idêntica à que haviam tido até então, o que é muito positivo em termos
psicológicos para o doador. Sendo a doação feita com reserva de usufruto o
proprietário é o donatário, mas o proprietário pleno? Não, o nu proprietário,
porque há um usufruto que pertence ao doador. A propriedade nua pertencerá
ao donatário. Note-se que a reserva de usufruto para terceiro vale como doação
de usufruto para este último
53
, problemática particularmente relevante para o
nosso estudo uma vez que pode acontecer a reserva de usufruto dos bens de um
casal até à morte do último dos cônjuges.
Pelo facto de na mesma doação assentar uma reserva de usufruto e um
modo não significa que o nu proprietário, que presta os cuidados ao doador na
casa que este lhe doou sob reserva de usufruto, esteja no direito de também nela
permanecer e habitar como se de um proprietário pleno se tratasse
54
. Se na doação
está dito, pelo autor da atribuição donativa, que esses cuidados seriam prestados
numa ambiência de coabitação na casa doada o problema será o da interpretação
do teor da cláusula modal e extração das daí derivadas consequências legais e
não um problema com a reserva de usufruto prevista no art. 958.º do CC.
4.3. O teor da cláusula modal
O art. 963.º, n.º 1 do CC limita-se a prescrever que [a]s doações podem ser
oneradas com encargos, acrescentando o n.º 2 que [o] donatário não é obrigado a cumprir
os encargos senão dentro dos limites do valor da coisa ou do direito doado. Apesar da
conexão entre a expressividade do encargo e o valor da coisa ou direito doado,
que parece defluir do n.º 2 do citado preceito, a doutrina aponta para o facto de
a prestação do donatário não ter que ser necessariamente patrimonial
55
. A regra
53
Como explicam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, [a] reserva de usufruto para terceiro
constitui uma segunda doação, ao lado da que é feita ao beneficiário da propriedade, necessitando de ser aceita
em vida do doador, segundo a regra geral do n.º 1 do artigo 945.º (Lima & Varela, 2010b: 262).
54
Como bem atentou o ac. 9/05.8TBGDM.P1 de 08-09-2009 do TRP [n]uma doação em que o
doador reservou para si o usufruto dos bens doados, entre eles uma casa de habitação, o donatário, enquanto
proprietário apenas da raiz da propriedade, não tem o direito de ocupar essa casa e impedir o doador de gozá-la
de forma plena e exclusiva, não se tendo convencionado na respectiva escritura que o cumprimento dos encargos
aí estipulados estava dependente da condição do donatário nela viver.
55
A este propósito veja-se BAPTISTA LOPES (Lopes, 1970: 113-114), PIRES DE LIMA e ANTU-
NES VARELA (Lima & Varela, 2010b: 269) e PALMA RAMALHO (Ramalho, 1990: 688-689).
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será a prevista no art. 398.º do CC: admitindo-se que a prestação do donatário
tenha conteúdo positivo ou negativo (n.º 1), esta não necessitará de ter valor
pecuniário, mas deverá corresponder a um interesse do doador que seja digno
de proteção legal (n.º 2)
56
. À luz do disposto no art. 967.º do CC, os encargos
física ou legalmente impossíveis, contrários à lei ou à ordem pública, ou ofensivos dos
bons costumes ficam sujeitos às regras estabelecidas em matéria testamentária (seremos,
portanto, remetidos para os art. 2245.º e 2230.º e segs. do CC)
57
.
O enquadramento legal, previsto no CC, parece permitir a aposição de
um encargo com a propensão finalística de prestação de cuidados vitalícios,
cujo quantum será, à partida, meramente determinável, quanto mais não seja,
em razão da incerteza quanto ao momento da morte do beneficiário (certus an,
incertus quando) e das suas necessidades variáveis e tendencialmente crescentes
58
.
Vejamos algumas passagens dos arestos já referidos, por forma a familiarizarmo-
nos com o conteúdo das cláusulas apostas nos contratos de doação modal
trazidos a juízo:
a) “a presente doação é feita com o encargo de lhe prestar toda a assistência total
e vitalícia, na saúde e na doença, prestando-lhe, designadamente, os alimentos,
amparo, vestuário e cuidados de saúde de que este necessite durante a sua velhi-
ce” (Ac. 3363/13.4TGTVD.L1-1 de 10-05-2016 do TRL);
b) “Os donatários ficam obrigados a tratar dos doadores na saúde e na doença,
dispensando-lhes o maior carinho e respeito e prestar-lhes-ão todos os serviços
domésticos, de assistência e trabalhos agrícolas, mas, se tais serviços não forem
prestados à vontade deles, poderão os doadores contratar uma empregada e os
trabalhadores necessários para aqueles fins, os quais serão pagos e sustentados
pelos donatários” (Ac. 4590/06.6TBMAI.P1 de 08-07-2010 do TRP);
c) com a obrigação de os donatários a tratarem e acompanharem na saúde e na
56
Como ensinava VAZ SERRA [o] modo pode ter qualquer conteúdo, desde que este possa constituir
objecto de uma obrigação; o doador não tem que ter interesse patrimonial no cumprimento; mas é preciso que
as partes queiram que o donatário fique realmente vinculado a uma obrigação. Se o cumprimento for apenas de
interesse para o donatário (v. g., doa-se certa quantia para um passeio), não haverá, em regra, esta intenção, mas
apenas um desejo ou um conselho não vinculantes (modus simplex, ao contrário do modo vinculante, modus
qualificatus, segundo a teoria antiga), podendo, porém, existir a intenção de obrigar, embora o modo seja no in-
teresse do donatário (v. g., na doação com o fim de compra de livros necessários para o estudo) (Serra, 1959: 83).
57
A este propósito, PALMA RAMALHO refere que devem ser consideradas como contrárias à lei
não apenas as cláusulas modais restritivas da liberdade individual do donatário enumeradas no artigo 2232.º,
como também outras semelhantes, sendo que, será de incluir na cláusula de «conviver ou não com certa pes-
soa» a cláusula que imponha o dever de coabitação com o doador (Ramalho, 1990: 691).
58
A propósito da delimitação quantitativa do encargo, PALMA RAMALHO explica-nos que
[a] não exigibilidade legal da quantificação do encargo justifica-se, desde logo, pela dificuldade que tal quanti-
ficação oferece, em virtude da admissibilidade de encargos de valor meramente determinável – se o donatário
assume a obrigação de custear as despesas com o internamento médico ou com a educação do filho do doador,
não deve a liberdade contratual de estipulação deste ser coarctada pela necessidade de indicação apriorística de
um qualquer quantitativo (Ramalho, 1990: 693).
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doença, fornecendo os donatários os meios para tal, de zelar pela sepultura que
possui no Cemitério Paroquial da freguesia, e de mandarem fazer o seu funeral,
conforme o uso e costume da freguesia e com missa de corpo presente e ainda de
mandarem celebrar por sua alma uma missa mensal, bem como a do seu aniver-
sário (Ac. 190/16.0T8BCL.G1 de 11-07-2017 do TRG);
d) ficando os donatários com a obrigação de tratar os doadores, doentes como doen-
tes e sãos como sãos, pagando tudo o que necessário for, bem como efectuar os
respectivos funerais (Ac. 9/05.8TBGDM.P1 de 08-09-2009 do TRP);
e) Os donatários ficam com o encargo de lhes prestarem assistência, com saúde ou
doença, cuidar da higiene e limpeza da habitação e vestuário, e prover, se neces-
sário à sua alimentação, vestuário, medicamentos e outras despesas inerentes.
Que, na hipótese do filho deles doadores II, divorciado, com eles residente, por
força de doença, vier a carecer dos mesmos cuidados, atrás referidos impõe, tam-
bém, aos donatários esse encargo (Ac. 21/11.8TBAVV-A.G1 de 24-09-2015
do TRG);
f) “que (a autora) faz estas doações com a obrigação dos donatários tratarem dela
doadora, na saúde e na doença, fornecendo a doadora os meios necessários para
tal, enquanto os seus proventos forem suficientes, e uma vez esgotados serão
suportados pelos donatários” (Ac. 2838/17.0T8BCL.G1 de 17-01-2019 do
TRG);
g) Tal doação foi feita pela autora com a condição (cláusula modal) de o donatá-
rio, aqui primeiro réu, cuidar da doadora “na saúde e na doença, com todos os
cuidados próprios à sua idade, designadamente no que disser respeito à sua ali-
mentação, vestuário, tratamentos médicos, farmacêuticos e hospitalares” (Ac.
1574/13.1TBFIG.C2.S1 de 03-10-2019 do STJ);
h) com o encargo da donatária lhes prestar assistência na doença, designadamente
dispensando-lhes o acompanhamento necessário, tanto na residência deles como
quando tenham de se deslocar, a fim de receber assistência médica ou hospitalar
(Ac. 109/07.0TBPCR.G1 de 22-03-2011 do TRG);
i) impunham ao donatário ou a quem o representar a obrigação de os sustentar
e tratar convenientemente, na saúde e na doença, pagar a médicos e enfermei-
ros, pagar medicamentos, roupas e tudo o mais que viessem a precisar (Ac.
15/09.3T2AND.C1.S1 de 01-07-2010 do STJ);
j) os donatários ficam obrigados a tratar a doadora na saúde e na doença, prestan-
do-lhe todos os serviços pessoais e domésticos de que ela carecer, bem como a ali-
mentação, vestuário, tratamento médico, medicamentoso e hospitalar, quando
ela disso necessitar (Ac. 122/10.0TBEPS.G1 de 12-07-2011 do TRG).
Os problemas com que a nossa jurisprudência se confronta prendem-se,
grosso modo, com a ambiguidade da cláusula
59
e com a questão de saber se o
59
Do rol de cláusulas modais que transcrevemos supra podemos chamar à colação a constante
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donatário se pode furtar a prestar os cuidados, substituindo-se no cumprimento
por um terceiro, ou se os seus herdeiros estão adstritos ao cumprimento do
encargo, em virtude de pré-morte do donatário face ao doador
60
. Essas são
questões que se reconduzem à problemática da interpretação do modo aposto
à doação. O processo hermenêutico seguirá o critério previsto no art. 236.º, n.º
1 do CC, com as salvaguardas previstas nesse preceito e aquelas que defluem
do consagrado nos preceitos subsequentes, nomeadamente aquela prevista no
art. 238.º, n.º 1 do CC – tendo sido a doação reduzida a escrito (art. 947.º, n.º 2,
segunda parte, do CC), caso não tenha que observar outro tipo de solenidade (art.
947.º, n.º 1 do CC), o encargo não poderá valer com um sentido que não tenha um
mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente
expresso (ressalvando-se, naturalmente, o previsto pelo art. 238.º, n.º 2 do CC).
4.4. As regras de direito sucessório
As doações, enquanto liberalidades, estão potencialmente sujeitas a colação
(art. 2104.º e segs. do CC)
61
e a redução por inoficiosidade (art. 2168.º e segs.
do CC)
62
, caso se verifiquem os circunstancialismos previstos na lei que façam
operar a disciplina de tais institutos. Sendo a questão da colação ultrapassável,
mediante a sua dispensa pelo doador, nos termos do art. 2113.º do CC, o mesmo
já não se pode dizer relativamente à redução por inoficiosidade, que pode
acontecer mesmo havendo dispensa de colação, ou em casos em que esta não
se coloca. Se a colação é propensa à igualação na partilha dos descendentes do
de cujus, a redução tem o propósito de salvaguarda da legítima dos herdeiros
legitimários, se os houver. Tratar-se-á de um problema de preenchimento das
quotas disponível e indisponível (art. 2162.º do CC), ganhando relevo quando o
valor das liberalidades excede o da quota disponível, caso em que podem ver-se
da al. c) que consiste na obrigação de os donatários tratarem e acompanharem a doadora, na saúde e
na doença, fornecendo os meios para tal. Atento somente o elemento literal da cláusula não é possível
aferir aquilo que esta comporta, tendo considerado o TRG que do texto é possível retirar-se, com facilida-
de, dois sentidos diversos, tornando incompreensível aquilo que a doadora quis efectivamente dizer.
60
Apesar de o art. 767.º, n.º 1 do CC preconizar um princípio de fungibilidade da prestação ([a]
prestação pode ser feita tanto pelo devedor como por terceiro, interessado ou não no cumprimento da obrigação),
o n.º 2 desse preceito exceciona-o, referindo que [o] credor não pode, todavia, ser constrangido a receber de
terceiro a prestação, quando se tenha acordado expressamente em que esta deve ser feita pelo devedor, ou quando
a substituição o prejudique.
61
Segundo o art. 2104.º do CC [o]s descendentes que pretendam entrar na sucessão do ascendente
devem restituir à massa da herança, para igualação da partilha, os bens ou valores que lhes foram doados por
este: esta restituição tem o nome de colação. Estão sujeitos à colação os descendentes que eram à data da doação
presuntivos herdeiros legitimários do doador (art. 2105.º do CC). A obrigação de conferir recairá sobre o do-
natário, se vier a suceder ao doador, ou sobre os seus representantes, ainda que estes não hajam tirado benefício
da liberalidade (art. 2106.º do CC).
62
Em conformidade com o art. 2168.º, n.º 1 do CC [d]izem-se inoficiosas as liberalidades, entre vivos
ou por morte, que ofendam a legítima dos herdeiros legitimários.
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reduzidas (art. 2169.º do CC).
O problema da possível redução por inoficiosidade será, também ele, uma
das grandes fragilidades da doação modal com o encargo do donatário prestar
cuidados vitalícios ao doador, porque, no fim de contas, o beneficiário da
liberalidade pode ver a sua atribuição donativa supervenientemente reduzida,
por ter ferido a parte que é obrigatoriamente destinada aos herdeiros legitimários
do doador, com os embaraços ocasionados pelos termos em que se efetua essa
redução (art. 2174.º do CC) e com aqueles relacionados com o perecimento ou
alienação dos bens doados (art. 2175.º do CC)
63
.
4.5. As reticências em torno da verdadeira natureza do negócio celebrado
Situações há em que é dúbio perceber se existe um contrato de doação
com encargos ou um contrato inominado ou atípico, sem desconsiderarmos,
naturalmente, a hipótese de haver um contrato misto (ou doação mista)
64
, ou
outro previsto no Código. A relevância da correta qualificação não é meramente
teórica. O facto de se estar, não perante um negócio gratuito como a doação
modal, mas antes perante um convénio oneroso e com traços de aleatoriedade
tem um enorme impacto no regime jurídico a aplicar ao negócio celebrado
65
.
63
Encontra-se na nossa jurisprudência uma ação em que está em causa um contrato de doação
modal com uma disposição precisamente destinada a salvaguardar um possível cenário de redução:
“caso a presente doação venha a ser objecto de redução, ao falecimento dos doadores, estipulam o montante de
seiscentos euros mensais sujeito a actualização, segundo cálculo oficial de desvalorização da moeda, o vencimen-
to mensal que deverá ser pago aos donatários, pelos serviços prestados a eles doadores, com efeitos a partir desta
data” (Ac. 21/11.8TBAVV-A.G1 de 24-09-2015 do TRG).
64
Nas palavras de VAZ SERRA, a doação mista ocorre quando a um negócio oneroso se liga uma
disposição gratuita, por haver uma diferença de valor entre a prestação e a contraprestação, diferença que as
partes querem que pertença a uma delas sem equivalente (Serra, 1958: 269).
65
No ac. 0633771 de 14-09-2006 do TRP está em crise uma decisão em que em questão encon-
trava-se a possibilidade de o tribunal autorizar, ou não, que um tutor, por si e em representação do
interdito, outorgasse uma escritura pública de doação de dois imóveis a favor de outrem que iria
cuidar do interdito num dos lares que é proprietário na saúde e na doença e enquanto fosse vivo.
Este pedido surge no encalço da celebração de um contrato promessa de doação e prestação de serviços, em
que a doação dos imóveis faria parte de uma prestação do interdito com um conteúdo mais alargado,
envolvendo a entrega do montante de reforma da Segurança Social a que teria direito. Apesar de o
Ministério Público e o parente mais próximo do interdito não oferecerem oposição, a ação foi julgada
improcedente pelo tribunal a quo, por falta de verificação do pressuposto «acto cuja validade depende de
autorização judicial» aludido no art. 1439.º do CPC (Código de Processo Civil) revogado (DL n.º 329-
A/95, de 12 de dezembro, com as supervenientes alterações). Analisando se em causa estaria uma
doação remuneratória, como defendido pelo recorrente, ou uma doação modal, pugnou o TRP, por
esta última, julgando improcedente a apelação e mantendo a decisão recorrida com fundamento nos
art. 949.º, n.º 2 e 1937.º, al. a) do CC. Esta decisão judicial remonta a 2006 e, entretanto, o quadro jurí-
dico português sofreu as profundas alterações introduzidas pela Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto, que
procedeu à criação do regime jurídico do maior acompanhado, eliminando os institutos da interdição
e da inabilitação, pelo que, abandonou-se a dicotomia interdito/inabilitado, substituída pela figura
do maior acompanhado. O problema de fundo, todavia, permanece. O art. 145.º, n.º 3 do CC inculca
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O nomen iuris utilizado pelas partes para designar o acordo celebrado não
é algo anterior àquilo que expressam nas suas declarações negociais. Explica-
nos MENEZES LEITÃO, referenciando GERNHUBER, que [a] integração do
contrato entre as categorias legais opera-se através da sua qualificação e depende da
circunstância de os elementos principais do contrato corresponderem aos elementos
principais do tipo legal, independentemente de a vontade das partes ir ou não ao
encontro dessa qualificação (Leitão, 2016: 185). A respeito do ónus de alegação
das partes e poderes de cognição do tribunal, é referido no art. 5.º, n.º 3 do
CPC
66
que [o] juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação,
interpretação e aplicação das regras de direito. Atentam LEBRE DE FREITAS e
ISABEL ALEXANDRE que, [c]ontrariamente ao que acontece no campo dos factos
da causa, o tribunal não está condicionado pelas alegações das partes no domínio da
indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas, o que é uma decorrência do
princípio constitucional da legalidade do conteúdo da decisão e usa exprimir-se com o
brocado latino jura novit curia (Freitas & Alexandre, 2014: 18-19)
67
. Será trabalho
que [o]s atos de disposição de bens imóveis carecem de autorização judicial prévia e específica e o n.º 4 que
[a] representação legal segue o regime da tutela, com as adaptações necessárias, podendo o tribunal dispensar a
constituição do conselho de família. Pois com certeza, o magistrado nada pode fazer face a uma indicação
clara da lei que prescreve [é] vedado ao tutor [d]ispor a título gratuito dos bens do menor (art. 1937.º, al. a
do CC), diga-se, por remissão do art. 145.º, n.º 4, dos bens do maior acompanhado. Soma-se, a esta, a
circunstância de o art. 949.º, n.º 2 do CC consagrar que [o]s representantes legais dos incapazes não podem
fazer doações em nome destes. Numa perspetiva puramente hipotética, pergunte-se, contudo, qual seria
a consequência de o contrato ser visto como atípico, oneroso e aleatório, uma perspetiva não muito
distante do alegado pelo recorrente nas conclusões do recurso: os bens imóveis do Interdito vão ser en-
tregues como contrapartida económica dos serviços prestados pela D………. àquele (9.ª conclusão); não está
o aqui Recorrente a dispor gratuitamente dos bens imóveis do Interdito, pelo que, não pode ser entendido que o
acto para o qual este requer a autorização judicial se enquadra no disposto no art º 1937 alínea a) do Cód. Civil
(11.ª conclusão); do teor do contrato junto aos autos a fls. 36 a 39 verifica-se que a doação dos bens imóveis
do Interdito serão entregues como contrapartida económica dos serviços que lhe estão e vão ser prestados pela
D………., o que preenche o disposto no artº 941 do Cód. Civil, ou seja, consiste numa doação remuneratória
(13.ª conclusão). O simples facto de se falar em contrapartida já é revelador de que aquilo que pode
estar em causa não é uma doação. Sem querermos fazer juízos a esse respeito, limitemo-nos a analisar
que desfecho teria tal aresto se o contrato fosse qualificado como oneroso e aleatório. Sendo a aliena-
ção de imóveis um ato de disposição, careceria de autorização judicial prévia e específica à luz do art.
145.º, n.º 3 do CC, sendo que, havendo representação legal, seguiria o regime da tutela nos termos do
n.º 4 desse preceito (seríamos catapultados para os art. 1889.º, n.º 1, al. a e 1938.º, n.º 1, al. a do CC).
Dizemos nós, sempre a autorização do tribunal encontraria a montante o problema da apreciação
sobre se o acompanhante estaria a privilegiar o bem-estar e a recuperação do acompanhado, com a
diligência requerida a um bom pai de família, na concreta situação em que este último se encontra
(art. 146.º, n.º 1 do CC), ao celebrar um acordo como o mencionado, mas a jusante já não se verifica-
ria, no caso, o intransponível embaraço prático, que deriva dos art. 145.º, n.º 4, conjugado com o art.
1937.º, al. a e 949.º, n.º 2, todos do CC, que veda ao magistrado a possibilidade de autorizar o ato de
liberalidade, ainda que com encargos.
66
Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, com as supervenientes alterações.
67
Os autores dão conta que o conhecimento oficioso da norma jurídica está dependente da introdução
na causa dos factos aos quais o tribunal a aplica, devendo sempre distinguir-se o plano dos factos, em que vigora,
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Os acordos com vista à prestação de cuidados vitalícios, p. 189-233
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do magistrado, atendendo à factualidade trazida, interpretar as declarações
negociais e perceber em que tipo legal se subsume o acordo firmado pelas
partes
68
. Para configurar uma doação terá que existir um enriquecimento do
donatário, (beneficiário da liberalidade), à custa do empobrecimento do doador
(aquele que vê diminuído o seu património) e deverá este último agir imbuído
por um espírito de generosidade. Existindo um encargo traduzido na prestação
de cuidados vitalícios essa tarefa de verificação dos pressupostos da doação
poderá não ser fácil. A determinação final do encargo está dependente de
circunstâncias alheias à previsão das partes, pelo que, só é possível aferir o exato
empobrecimento do doador e o correspondente enriquecimento do donatário
quando ocorrer a morte do doador que beneficia dos cuidados. Além disso,
o art. 963.º, n.º 2 do CC limita-se a prescrever que [o] donatário não é obrigado
a cumprir os encargos senão dentro dos limites do valor da coisa ou do direito doado,
o que permite depreender que o pode fazer se assim entender
69
. O animus do
doador será, por isso, a pedra de toque da dilucidação qualificativa do acordo
celebrado. Como nos refere MENEZES LEITÃO [s]empre que não seja visível o
espírito de liberalidade, o acto não estará em condições de ser qualificado como doação
(Leitão, 2009: 177). Dito de outra forma, e em linha com VAZ SERRA, não haverá
doação quando o encargo tem o sentido de um equivalente ou contraprestação (Serra,
1958: 269). Temos um critério que se furta à possível imprevisão da dimensão
do encargo e do enriquecimento do donatário e que, com segurança, oferece
a chave para o enquadramento legal do negócio, em face de uma realidade
duvidosa ou menos nítida
70
.
mesmo em matéria de direito processual, o princípio do dispositivo, e o plano do direito, em que a soberania per-
tence ao juiz, sem prejuízo ainda, no que ao direito material se refere, de o conhecimento oficioso se circunscrever
no domínio definido pelo objeto do processo (Freitas & Alexandre, 2014: 19).
68
Atenta o ac. 1903/06.4TVLSB.L1.S1 de 20-03-2012 do STJ que [a] definição de um contrato como
pertencendo a determinado tipo contratual, necessária para determinar qual o regime jurídico aplicável, é uma
operação lógica subsequente à interpretação das declarações de vontade das partes e dela dependente, acres-
centando que o nome com que as partes catalogaram o acordo firmado poderá, quando muito, servir como um
elemento auxiliar, entre outros, a ter em consideração no esforço interpretativo para alcançar o real sentido das
declarações de vontade, nada garantindo que a conclusão atingida coincida com o nomen utilizado pelas partes.
69
Na jurisprudência, o ac. 955/14.8TBCLD.C1 de 08-03-2016 do TRC explica-nos que a restrição
à liberalidade em que o encargo praticamente se traduz, não obstante subtrair valor à disposição, não chega a
descaracterizá-la como acto fundamentalmente gratuito. Acrescenta que [é] a graciosidade do acto do dispo-
nente que justifica e explica que através do valor do encargo, o suposto beneficiário possa aceitar sacrificar-se em
mais do que o valor da coisa ou direito transmitidos, mas não que a isso fique vinculado. Por essa razão é que o
nº 2 do art.º 963 admite a recusa do donatário em cumprir o encargo quando ele fique onerado em mais do que o
valor da coisa ou direito. Admite a recusa do cumprimento: não afasta a possibilidade do cumprimento. Apesar
de tudo, se quiser cumprir o encargo, o donatário pode fazê-lo. Não é, por conseguinte, o desequilíbrio do encargo
que apaga a graciosidade do acto, transformando-o em acto oneroso. É exactamente porque nesta hipótese a lei
considera não haver um negócio oneroso que se compreende que ela continue a tratar como doação a disposição
de uma coisa em que o encargo do donatário pode suplantar o valor dessa mesma disposição.
70
Não se pode desconsiderar, igualmente, como dissemos, a possibilidade de o acordo celebra-
do ser qualificado como negotium mixtum cum donatione.
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A qualificação do negócio como gratuito ou oneroso assume grande
relevância em sede de impugnação pauliana (art. 610.º e segs. do CC). Dos
vários requisitos a observar para se lançar mão deste expediente, um deles
relaciona-se com a má fé do devedor e do terceiro
71
, que é dispensada se o
ato for gratuito (art. 612.º, n.º 1, parte final, do CC). Quer isto dizer que, se o
contrato celebrado for de doação, mesmo que modal, a impugnação procede
ainda que o devedor e o terceiro estejam a agir de boa fé
72
.
5. Os acordos celebrados ao abrigo do princípio da liberdade contratual
(art. 405.º do CC)
As figuras jurídicas tipificadas no CC não são axiomas antepostos à
vontade das partes, que face a eles têm que ajustar a sua expressão volitiva.
Pelo contrário, as declarações negociais devem ser interpretadas à luz das
regras vertidas nos art 236.º e segs. do CC, não estando as partes coartadas na
realização de contratos diferentes dos previstos na lei. Orientação diferente
seria incompreensível num sistema jurídico como o nosso, que preconiza o
princípio da liberdade contratual (art. 405.º do CC), que entronca no princípio
mais amplo da autonomia privada
73
. Da liberdade contratual, inserida numa
simbiose de princípios que com ela se articulam e que são a base do regime dos
contratos
74
, sucede o beneplácito legal à liberdade de celebração (celebrar) e de
fixação (fixar) do conteúdo dos contratos que, como o próprio art. 405.º, n.º 1
logo começa por prescrever – [d]entro dos limites da lei –, não deixam de ter que
observar o previsto noutras disposições legais
75
.
Podemos agrupar os contratos em típicos
76
, atípicos e mistos, estes últimos
mencionados pelo art. 405.º, n.º 2 do CC, sem desconsiderar os fenómenos em
71
Em conformidade com o art. 612.º, n.º 2 do CC, [e]ntende-se por má fé a consciência do prejuízo
que o acto causa ao credor.
72
Note-se que o ónus da prova não impende somente sobre o que pretende ver o ato impug-
nado. Nos termos do art. 611.º do CC [i]ncumbe ao credor a prova do montante das dívidas, e ao devedor
ou a terceiro interessado na manutenção do acto a prova de que o obrigado possui bens penhoráveis de igual ou
maior valor.
73
Explica-nos MOTA PINTO que [a] liberdade contratual é (...) a mais visível manifestação da auto-
nomia privada (Pinto, 2012: 107).
74
Como nos explica ALMEIDA COSTA, [a] exegese do direito dos contratos permite detectar alguns
parâmetros que definem as suas coordenadas básicas. Reduzem-se, essencialmente, a quatro grandes princípios:
o da liberdade contratual, o do consensualismo, o da boa fé e o da força vinculativa (Costa, 2001: 205).
75
Para maiores desenvolvimentos a este respeito vejam-se PIRES DE LIMA e ANTUNES VA-
RELA in Lima, P., & Varela, A. (2010). Código Civil Anotado - Volume I (4.ª ed., Vol. I). Coimbra:
Coimbra editora, pp. 355-356.
76
São vários os contratos que se encontram tipificados no CC, num catálogo que se estende do
art. 874.º até ao art. 1250.º.
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Os acordos com vista à prestação de cuidados vitalícios, p. 189-233
Lusíada. Direito • 27/28 (1.º e 2.º semestre de 2022) 213
que existe união de contratos
77
. A nossa jurisprudência conta já com vários
acórdãos em que são trazidos à discussão contratos com vista à prestação
de cuidados vitalícios que, não sendo diretamente subsumíveis nos regimes
de uma das figuras tipificadas pelo nosso legislador no CC, são qualificados
pelos magistrados como mistos
78
ou atípicos
79
. A pergunta que sucede é se
77
Explica-nos ALMEIDA COSTA, a propósito da classificação dos contratos, que são típicos os
que a lei prevê e regula, de modo expresso, atípicos os que as partes criam fora dos moldes daqueles e mistos
quando se reúnam num único contrato as características de dois ou mais contratos tipificados (Costa, 2001:
217). Esta última realidade não se confunde com a união ou coligação de contratos, porque, à luz dos
ensinamentos do mesmo autor, [n]este caso, trata-se de dois ou mais contratos entre si ligados de alguma
maneira, todavia sem prejuízo da individualidade própria que subsiste (Costa, 2001: 342). Para maiores de-
senvolvimentos a este respeito, vejam-se ALMEIDA COSTA in Costa, M. (2001). Direito das Obrigações
(9.ª ed.). Coimbra: Almedina, pp. 216-219 e 337-343; ANTUNES VARELA in Varela, J. (2000). Das
Obrigações em Geral (10.ª ed., Vol. I). Coimbra: Almedina, pp. 272-300 e MENEZES LEITÃO in Leitão,
L. (2016). Direito das Obrigações : Introdução. Da Constituição das Obrigações (13ª ed., Vol. I). Coimbra:
Almedina, pp. 185-191.
78
O ac. 1588/05.5TBVNO.C1 de 27-02-2007 do TRC denotou que, da factualidade apurada, re-
sulta que o contrato celebrado com vista ao fornecimento de alojamento e alimentação, mas, também,
assistência médica, enfermagem, acompanhamento e vigilância assume a natureza de um contrato misto
de prestação genérica de serviço e de albergaria ou hospedagem, que colhe a sua regulamentação essencial no
contrato de mandato.
79
O ac. 2/14.0T8PVZ.P1 de 10-03-2015 do TRP, apresentando um quadro fáctico cuja riqueza
dos contornos extravasa o âmbito da análise que pretendemos desenvolver, descreve um exemplo
bem claro de celebração de um contrato com vista à prestação de cuidados vitalícios. Temos um “Con-
trato de admissão e assistência” em “Lar de Internamento”, em que de um dos lados da relação contratual
está uma senhora de 65 anos de idade que procede à entrega instantânea de cinquenta mil euros (as-
somam-se os juros que tal quantia gerou, no montante de mil e trezentos euros), seguindo-se, depois
de já instalada no lar à mais de um mês, a doação de um apartamento e a entrega periódica mensal
de 80% da sua pensão. Do outro lado da relação encontramos uma “C”, que à luz do aresto tem o
estatuto de instituição particular de solidariedade social (IPSS), que se compromete a instalar a utente em
quarto duplo, a ser ocupado apenas por si, com a ressalva de que, em situação de acamada poderia
ser transferida para enfermaria, a prestar-lhe alimentação, quer enquanto sã, quer enquanto doente,
a prestar-lhe assistência médica e medicamentosa, diretamente ou através do SNS, proporcionar-
-lhe assistência religiosa católica, através do seu Capelão, e a realizar o seu funeral, assumindo as
despesas inerentes ao mesmo. Vemos aqui um grande cuidado com a determinação do conteúdo da
prestação de cuidados, algo que não verificamos em grande parte das cláusulas modais transcritas
anteriormente. Para a qualificação do contrato celebrado, a designação que as partes lhe atribuíram
não se reconduz à de nenhuma figura típica do CC. O tribunal entendeu que, do contrato celebrado,
sobressaiam elementos do contrato de prestação de serviços e de um contrato de constituição de direito de
habitação. Considerou, ainda, tratar-se de uma convenção atípica.
No que concerne ao ac. 889/04.4TBOVR de 10-11-2011 do STJ, sem prescindir da necessária leitura
do mesmo para melhor compreensão do circunstancialismo que está na base da celebração deste
convénio, decalcar aqui o excerto do acordo (escrito particular), que consta da matéria de facto e
que permite observar o que foi estabelecido pelas partes: «1º Os outorgantes Jorge e esposa obrigam-se
a conceder habitação e alojamento em sua companhia à outorgante A., enquanto viva, bem como a prestar-
lhe toda a assistência e cuidados que aquela careça». 2º «Para melhor alojar e acomodar a mãe e sogra,
os outorgantes B. e esposa permitem aquela, desde concedendo a respectiva autorização, a realização de
obras ou benfeitorias no seu prédio.... Porém tais obras ou melhoramentos cam a pertencer ao prédio em
que se integram, sem que a outorgante A. possa alegar direito de retenção ou exigir o pagamento de qualquer
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214 Lusíada. Direito • 27/28 (1.º e 2.º semestre de 2022)
não poderia, ou deveria, o legislador português ir mais além consagrando
um regime específico para um acordo oneroso, em que a obrigação de uma
das partes teria por conteúdo a prestação de cuidados vitalícios. A título
ilustrativo, encontramos jurisprudência a fazer referência ao contrato de
prestação de serviço e ao contrato de albergaria ou hospedagem
80
, sendo este
último um contrato que já nem se encontra tipificado no atual CC, diploma
que apenas contempla referências a esse acordo tipificado no Código de Seabra
(art. 1419.º a 1423.º)
81
. Depois, sempre se somam os problemas relacionáveis
com a disciplina jurídica que deve ser aplicada a esses acordos – vejam-se
as diferentes teorias criadas em torno da problemática de saber que regime
jurídico se aplica aos contratos mistos
82
.
indemnização». 3º O incumprimento do clausulado nos nºs 1 e 2 por parte dos outorgantes B. e esposa, obriga-
os a indemnizar, a título de cláusula penal, a outorgante A. na quantia de 4.000.000$00.» 4º Por seu turno, a
outorgante A. compromete-se a, enquanto na companhia dos outorgantes B. e esposa, não permitir o acesso e
visitas da lha e respectivo agregado familiar à sua habitação».
Nos ac. 06A2741 de 17-10-2006 do STJ e 0525777 de 07-03-2006 do TRP é alegado pela autora a exis-
tência de um contrato denominado aquisição de posição vitalícia em lar, celebrado entre esta e os réus.
A autora alegou ter entregado à ré o montante de 25.000.000$00, titulado por cheque, com vista a
adquirir uma posição vitalícia num lar que esta manifestou-lhe intenção de abrir. Acontece que esse
lar de terceira idade não chegou a ser criado pela ré, procurando a autora ver-se restituída da quantia
entregue. Não se chegou a provar a existência desse acordo, alegado pela autora, tendo sido a questão
resolvida por via do instituto do enriquecimento sem causa, tendo sido a prova dos pressupostos
conducentes à sua aplicação a questão central dos arestos.
Já no ac. 314/12.7TBTBU.C1 de 10-02-2015 do TRC é descrito um cenário em que [o] [a]utor e a sua
falecida esposa e os réus acordaram em entregarem a estes a quantia de 15.000,00 €, para que estes construíssem
um anexo à casa de habitação dos réus, onde aqueles passariam a residir, acordando ainda em que, quando tal
acontecesse, os réus prestariam àqueles os necessários cuidados alimentares, de higiene e medicamentosos, e
como contrapartida deste auxílio, os réus fariam seu o dito anexo. Debruçando-se sobre a qualificação do
acordo, o TRC considerou tratar-se de um contrato atípico e inominado, dentro do princípio da liberdade
contratual ínsito no artigo 405º do Código Civil.
80
Veja-se o, já mencionado, ac. 1588/05.5TBVNO.C1 de 27-02-2007 do TRC.
81
Dispunha o art. 1419.º do Código Civil de 1867 que [d]á-se contracto de albergaria, quando
alguem presta a outrem albergue e alimento, ou só albergue, mediante a retribuição ajustada ou do costume.
Face ao CC atual, atente-se no art. 755, n.º 1, al. b que preceitua que goza de direito de retenção [o]
albergueiro, sobre as coisas que as pessoas albergadas hajam trazido para a pousada ou acessórios dela, pelo
crédito da hospedagem.
82
Para maiores desenvolvimentos a este respeito veja-se ALMEIDA COSTA in Costa, M.
(2001). Direito das Obrigações (9.ª ed.). Coimbra: Almedina, pp. 340-342; ANTUNES VARELA in Va-
rela, J. (2000). Das Obrigações em Geral (10.ª ed., Vol. I). Coimbra: Almedina, pp. 287-294 e MENEZES
LEITÃO in Leitão, L. (2016). Direito das Obrigações : Introdução. Da Constituição das Obrigações (13ª ed.,
Vol. I). Coimbra: Almedina, pp. 186-190.
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Os acordos com vista à prestação de cuidados vitalícios, p. 189-233
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6. Contributos para uma futura tipificação de um acordo oneroso e dotado
de uma alea com vista à prestação de cuidados vitalícios
6.1. O afastamento da fisionomia do contrato de renda vitalícia
Através da celebração de um contrato de renda vitalícia é possível que uma
pessoa aliene em favor de outra certa soma de dinheiro, ou qualquer outra coisa móvel
ou imóvel, ou um direito, em contrapartida do recebimento vitalício de uma certa
quantia em dinheiro ou outra coisa fungível (art. 1238.º do CC). Esta quantia pode
permitir-lhe custear as despesas relacionadas com a sua subsistência, o que não
quer dizer que não possa ser afeta a qualquer outro fim. Em relação ao beneficiário
da renda/titular da vida contemplada constata-se a vocação do contrato de
renda vitalícia para um fim de previdência, sem que tenha, no entanto, que o
ter. O beneficiário sabe apenas que, até à sua morte, contará com o recebimento
periódico da quantia estabelecida, podendo destiná-la ao que entender.
Se concebermos um hipotético contrato em que de um dos lados da relação
contratual se encontra, também, a dita alienação instantânea de certa soma de
dinheiro, ou qualquer outra coisa móvel ou imóvel, ou um direito, mas do outro a
prestação de cuidados vitalícios, aproxima-se o esquema de ambos os acordos
pelo facto de terem a vida de uma pessoa como marco de duração da obrigação,
cujo término está associado à verificação do acontecimento certus an, incertus
quando (morte do beneficiário), mas estamos a falar de um mero ponto de contacto,
no nosso modo de ver, insuficiente para ditar o alheamento relativamente a
outros aspetos em que já não existe confluência. O nosso legislador logrou por
ser muito claro na determinação do objeto mediato da relação jurídica de renda
vitalícia com origem contratual. O objeto da prestação do adquirente/devedor
da renda será uma coisa fungível. Note-se que esta clareza não faz espelho com
regimes congéneres como o espanhol, francês e italiano, que não especificam o
objeto da prestação dos sujeitos contratuais num contrato de renda vitalícia como
o faz o legislador português
83
. Redundando a prestação de cuidados vitalícios
numa prestação essencialmente de facere – inserida numa obrigação mista
entre dar e fazer – prestação duradoura continuada, logo se aparta o acordo
83
Os nossos vizinhos espanhóis, no catálogo de preceitos relativos ao contrato de renta vitalícia
– art. 1802.º a 1808.º do CCEs (Código Civil Espanhol) –, limitam-se a referir que este contrato obliga
al deudor a pagar una pensión o rédito anual, no art. 1802.º do CCEs, sem explicarem em que é que se
traduz tal pensión o rédito anual. No CCFr (Código Civil Francês) também não se encontra, no elenco
de disposições dedicadas ao contrat de rente viagère (art. 1968.º a 1983.º do CCFr), nenhuma indicação
clara do conteúdo da prestação do devedor da mesma, silêncio que se estende ao regime jurídico da
rendita vitalizia italiano que também não especifica expressamente nos art. 1872.º a 1881.º do CCIt
(Código Civil Italiano) o objeto da mesma. Note-se, não obstante, que no regime jurídico da rendita
perpetua (art. 1861.º a 1871.º do CCIt), que antecede o da rendita vitalizia, essa delimitação já acontece.
O art. 1861.º faz clara menção a uma prestazione periodica di una somma di danaro o di una certa quantità
di altre cose fungibili, quale corrispettivo dell’alienazione di un immobile o della cessione di un capitale.
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celebrado do regime jurídico do contrato de renda vitalícia, não oferecendo a
redação legal do art. 1238.º do CC dúvidas a esse respeito. Mesmo que consistisse
em dinheiro, prestação de dare duradoura periódica de coisa fungível, atrás
da prestação pecuniária, objeto da relação obrigacional, estaria uma ideia
de fornecimento de cuidados, cuidados esses que são variáveis em função da
evolução das necessidades do beneficiário dos mesmos. Quer isto dizer que, não
existiria apenas a variável relacionada com a longevidade do beneficiário, que
se verifica no contrato de renda vitalícia, somar-se-ia a esta, para a determinação
do quantum da prestação periódica a realizar, uma outra relacionada com o seu
estado de saúde e necessidades mutáveis e tendencialmente crescentes, em razão
do avançar da idade.
Em suma, acreditamos que é de afastar qualquer tentativa de subsunção de
um contrato com vista à prestação de cuidados vitalícios no regime jurídico do
contrato de renda vitalícia, porque não deve ser o facto de ambas as prestações
serem vitalícias a fazer-nos desconsiderar tudo o resto que diferencia os acordos
84
.
6.2. O estado da arte no direito comparado
Não são desconhecidos no direito comparado acordos onerosos e aleatórios
em que sobre um dos sujeitos da relação contratual impende a obrigação de
prestar cuidados vitalícios. Da atipicidade à tipificação mais ou menos recente,
encontramos em ordenamentos próximos do nosso, como o alemão, francês,
italiano, espanhol e suíço realidades já bem delineadas, mesmo que em alguns
deles não exista consagração de um articulado legal exclusivamente destinado a
disciplinar a figura.
Numa época anterior à promulgação do BGB, isto é, antes de 1 de janeiro
de 1900, BERENGUER ALBALADEJO explica-nos que, na Alemanha do norte,
utilizava-se o termo Leibrentenvertrag para designar o acordo através do qual
se constituía uma renda vitalícia e Leibzuchtvertrag para dar nome, em termos
amplos, ao acordo en virtud del cual una de las partes otorga a la otra un fundo, a
cambio de ser cuidada y mantenida hasta el día de su muerte (Albaladejo, 2012: 158)
85
.
No que toca a estes segundos, a autora explica que, uma vez que estes acordos se
encontravam já regulados pelos costumes locais de cada região
86
, os redatores do
84
Como nos refere ANTUNES VARELA, [s]empre que na convenção celebrada entre as partes se
instale um dos esquemas ou modelos previstos na lei e as cláusulas acrescentadas pelas partes não destruam
o núcleo essencial do seu acordo, nem lhe aditem qualquer outro dos esquemas legalmente autonomizados, o
contrato continuará a pertencer ao tipo correspondente a esse esquema. Quando assim não suceda, a convenção
negocial das partes navegará já no gurgite vasto dos contratos atípicos ou inominados (Varela, 2000: 275).
85
Para uma perspetiva histórica veja-se OTTO STOBBE in Stobbe, O. (1865). Beiträge zur Ges-
chichte des deutschen Rechts. Braunschweig: C. A. Schwetschke und Sohn, pp. 25-35.
86
Num texto de 1901, E. THUNOT explica que [d]ans les pays comme la Suisse ou l’Allemagne, où il
reste encore des vestiges de la vie patriarcale et où, par suite, le bail à nourriture est assez usité, les législations
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Os acordos com vista à prestação de cuidados vitalícios, p. 189-233
Lusíada. Direito • 27/28 (1.º e 2.º semestre de 2022) 217
projeto do Código optaram por não disciplinar especificamente um contrato com
vista a esse fim no BGB, deixando que cada Estado tivesse liberdade para dictar
las disposiciones adecuadas a sus propias necesidades y a sus tradiciones (Albaladejo,
2012: 161).
No ordenamento jurídico francês reconhece-se, com independência
do contrato de rente viagère, o chamado bail à nourriture. Este acordo atípico é
conhecido pela doutrina e jurisprudência – atente-se para o facto de a primeira
grande obra sobre este contrato ter sido desenvolvida por HENRI LALOU já em
1900
87
– que o definem como aquele em que uma pessoa se compromete a prover
à satisfação das necessidades existenciais de outra, como alimentação, alojamento
e demais cuidados reclamados pela sua condição
88
, enquanto viver, em troca do
pagamento de determinada quantia em intervalos de tempo determinados (por
exemplo anualmente), ou mediante a alienação instantânea de algo
89
. MICHEL
ARTAZ dá conta que a realização periódica do pagamento de determinada
quantia em contrapartida da prestação de cuidados é uma realidade pouco
habitual, sucedendo com maior frequência a alienação instantânea de certa
soma de dinheiro ou de um bem móvel ou imóvel (Artaz, 2016: 179). O mesmo
autor individualiza os traços de onerosidade e aleatoriedade, referindo que o
bail à nourriture reveste um duplo caráter aleatório, relacionado não só com a sua
duração, ligada à vida do bailleur (que será o que recebe os cuidados in natura), mas
também com o alcance da prestação do preneur (aquele que presta os cuidados),
sensível ao estado de saúde do bailleur (Artaz, 2016: 178-179). Acrescenta que se
trata de um contrato dominado pelo intuitu personae, podendo, no entanto, este
preneur ser uma pessoa coletiva se o bailleur a tiver escolhido desde início para ser
civiles locales ont réglementé ce contrat (Thunot, 1901: 257).
87
Veja-se, a este respeito, CHRISTIAN GAVALDA (Gavalda, 1953: 637) e E. THUNOT (Thunot,
1901: 257). Numa rápida pesquisa na página da Cour de Cassation, na rubrica bail à nourriture, encon-
tramos o Arrêt n.º 369 datado de 23-03-2017 (16-13.060) - Cour de Cassation - Troisème chambre civile -
ECLI:FR:CCASS:2017:C300369. O facto de a decisão ser ainda recente permite apontar atualidade às
questões emergentes de acordos desse tipo no ordenamento jurídico francês.
88
Explica-nos MICHEL ARTAZ que [l]e but du bail à nourriture est de pourvoir à tous les besoins
nécessaires à la vie : logement, chauffage, habillement, nourriture, obligations de soins tant en santé qu’en ma-
ladie. Le principe est que tout ce qui est nécessaire à l’existence selon l’état et la position du bailleur doit lui être
fourni. Il est d’usage, et préférable, de préciser quelles prestations le preneur est tenu de fournir, surtout si des
prestations habituelles sont exclues ou au contraire si des prestations inhabituelles (argent de poche, véhicule...)
sont comprises (Artaz, 2016: 179).
89
MICHEL ARTAZ, reproduzindo a definição de GÉRARD CORNU, explica-nos que o bail à
nourriture est un contrat aléatoire, «par lequel une personne prend l’engagement envers une autre personne de
la nourrir et entretenir de tous soins, moyennant une redevance annuelle ou toute autre prestation : paiement
d’un capital, abandon de meubles, etc.» (Artaz, 2016: 177). MARIO ZANA transcreve a definição de bail
à nourriture adotada pela Cour de Cassation francesa numa decisão de 21-11-1892, como sendo o acor-
do em que «una persona si impegna a provvedere a tutti i bisogni di un›altra (cioè, a nutrirla, alloggiarla
ed assisterla) nché questa sia in vita dietro corrispettivo di una somma di denaro a scadenze stabilite (per
esempio, annualmente), o dell›alienazione di un capitale mobiliare o immobiliare» (Zana, 2005: 95).
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218 Lusíada. Direito • 27/28 (1.º e 2.º semestre de 2022)
a devedora da prestação (Artaz, 2016: 179).
No direito italiano questionava-se a assimilação do vitalizio alimentare ou
do contratto di mantenimento ao contrato de rendita vitalizia
90
. MARIO ZANA
dá conta que nem o Código 1865, nem o de 1942, tipificaram esse acordo (Zana,
2005: 98 e 100), sendo que doutrina e jurisprudência discutiam a natureza destes
vitalicios improprios, averiguando se teriam correspondência com o esquema do
contrato de rendita vitalizia ou se deveriam ser vistos como autónomos daquele. A
jurisprudência atual propugna por distinguir ambos os acordos, acompanhando-a
a doutrina maioritária
91
. BERENGUER ALBALADEJO explica-nos que, apesar
de a jurisprudência empregar com frequência a expressão vitalizio alimentare
como equivalente do contratto di mantenimento, a doutrina parece tender a separá-
los, vendo-se na prestação derivada deste último maior amplitude quantitativa e
qualitativa (Albaladejo, 2012: 101-102).
Fornecem-nos os direitos espanhol e suíço disposições legais destinadas a
disciplinar a figura congénere das anteditas, típica nestes dois ordenamentos.
No ordenamento jurídico espanhol deu-se a tipificação do contrato de alimentos
através da Ley 41/2003 de 18 de novembro (art. 12.º), de protección patrimonial de
las personas con discapacidad, que veio alterar o CCEs (Código Civil Espanhol),
a lei de processo civil e a lei fiscal. Segundo TORAL LARA tratava-se, até esse
momento, a nível estatal, de uma figura atípica, com exceção de determinados
direitos forais (Lara, 2008: 138). Das designações que lhe eram atribuídas a mais
comum era contrato vitalicio (ibidem). A exposição de motivos da referida lei dá-
nos conta da frequência com que este acordo era já celebrado
92
e destaca o facto
de este vir ampliar as possibilidades atualmente oferecidas pelo contrato de renta
vitalicia, permitindo às partes que celebram o contrato quantificar a prestação
do alimentante (devedor de alimentos) de acordo com as necessidades vitais do
alimentista (beneficiário dos alimentos)
93
.
90
Sobre o assunto veja-se GIOVANNI DATTILO in Dattilo, G. (1988). Rendita (dir. priv.). Em
F. Santoro-Passarelli, Enciclopedia del Diritto (Vol. XXXIX, pp. 853-882). Varese: Giuffrè, pp. 872-873;
MARIO ZANA in Zana, M. (gennaio-febbraio de 2005). Contrattualizzazione dell’assistenza. Familia
: Rivista di diritto della famiglia e delle successioni in Europa, pp. 91-107; ANDREA TORRENTE in Tor-
rente, A. (1948). Rendita Perpetua - Rendita Vitalizia. Em A. Scialoja, & G. Branca, Commentario del
Codice Civile : Libro quarto, delle obbligazioni. Bologna: Nicola Zanichelli Editore, p. 72; GIORGIO CIAN
e ALBERTO TRABUCCHI in Cian, G., & Trabucchi, A. (2005). Commentario Breve al Codice Civile :
Complemento Giurisprudenziale (7.ª ed.). Padova: CEDAM, pp. 2338-2339; GABRIELE PESCATORE e
CESARE RUPERTO in Pescatore, G., & Ruperto, C. (2005). Codice Civile : Annotato con la giurisprudenza
della Corte Costituzionale, della Corte di Cassazione e delle giurisdizioni amministrative superiori (13.ª ed.,
Vol. II). Milano: Dott. A. Giuffrè, pp. 3063-3065 e PAOLO CENDON in Cendon, P. (1991). Commenta-
rio al Codice Civile (Vol. IV). Torino, Itália: Utet, pp. 1614-1616.
91
A este respeito veja-se BERENGUER ALBALADEJO, que apresenta aprofundada análise da
evolução doutrinária e jurisprudencial nesse ordenamento (Albaladejo, 2012: 86-97).
92
É indicado na exposição de motivos da Ley 41/2003 de 18 de novembro que este contrato era
frecuentemente celebrado en la práctica y examinado en ocasiones por la jurisprudencia del Tribunal Supremo.
93
É indicado na exposição de motivos da Ley 41/2003 de 18 de novembro que este contrato amplía
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Os acordos com vista à prestação de cuidados vitalícios, p. 189-233
Lusíada. Direito • 27/28 (1.º e 2.º semestre de 2022) 219
Para discernirmos a aleatoriedade deste contrato, previsto nos art. 1791.º a
1797.º do CCEs, não necessitamos de recorrer à elucubração doutrinária desse
ordenamento, porque a própria lei civil espanhola isso transmite com total
clareza ao consagrar o contrato de alimentos sob o título de los contratos aleatorios o
de suerte. É definido no art. 1791.º do CCEs como o contrato através do qual una
de las partes se obliga a proporcionar vivienda, manutención y asistencia de todo tipo a
una persona durante su vida, a cambio de la transmisión de un capital en cualquier clase
de bienes y derechos. Verifica-se abertura relativamente àquilo que pode ser objeto
da prestação do alimentista – consistente na transmisión de un capital en cualquier
clase de bienes y derechos –, assim como para a possibilidade de os alimentos serem
contratados a favor de terceiro – a redação do preceito indica que uma parte
se obriga a prestar a uma pessoa durante a sua vida
94
. A extensión y calidad da
prestação de alimentos, diz-nos o art. 1793.º do CCEs, serão as que resultem do
contrato e, na ausência de acordo em contrário, no dependerá de las vicisitudes del
caudal y necesidades del obligado ni de las del caudal de quien los recibe. Parece haver
aqui uma solução diferente da prevista no âmbito dos alimentos entre parientes, já
que o art. 146.º do CCEs indica que [l]a cuantía de los alimentos será proporcionada
al caudal o medios de quien los da y a las necesidades de quien los recibe e o art. 147.º
do mesmo diploma prevê que [l]os alimentos, en los casos a que se refiere el artículo
anterior, se reducirán o aumentarán proporcionalmente según el aumento o disminución
que sufran las necesidades del alimentista y la fortuna del que hubiere de satisfacerlos. O
afastamento entre o estabelecido na disciplina deste acordo e na disciplina das
obrigações legais de alimentos é igualmente visível no art. 1794.º, que subtrai a
aplicabilidade do art. 152.º, no que diz respeito às outras causas de extinção da
obrigação de alimentos para além da morte do alimentista.
Um dos aspetos que o legislador espanhol teve o cuidado de salvaguardar, e
que merece reparo de nossa parte pela sua importância, é a possibilidade de ocorrer
a pré-morte do alimentante em relação ao alimentista, ou qualquer circunstância
grave que impeça a pacífica convivência entre as partes, determinando o art. 1792.º
que, nesses casos, qualquer delas podrá pedir que la prestación de alimentos convenida
se pague mediante la pensión actualizable a satisfacer por plazos anticipados que para esos
eventos hubiere sido prevista en el contrato o, de no haber sido prevista, mediante la que se
fije judicialmente. Refere o preceito que esta prestação de alimentos in natura pode
ser substituída por uma pensión actualizable. Fica a questão de saber se esta pensão
atualizável continua a ser variável em função das necessidades do alimentista ou
las posibilidades que actualmente ofrece el contrato de renta vitalicia para atender a las necesidades económicas
de las personas con discapacidad y, en general, de las personas con dependencia, como los ancianos, y permite a
las partes que celebren el contrato cuantificar la obligación del alimentante en función de las necesidades vitales
del alimentista.
94
Como explica RAGEL SÁNCHEZ, será posible que el alimentista sea una persona distinta de la
que entrega los bienes o cede los derechos, puesto que el artículo 1791 no exige que la transmisión sea efectuada
precisamente por el acreedor de los alimentos (Sánchez, 2004: 101).
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220 Lusíada. Direito • 27/28 (1.º e 2.º semestre de 2022)
se se reconduz a uma renda vitalícia atualizável
95
.
Os art. 1795.º e 1796.º relacionam-se com a problemática do incumprimento
e resolução do contrato, terminando o catálogo normativo espanhol, dedicado a
esta figura contratual, no art. 1797.º, com uma norma cujo teor se relaciona com
a garantia do cumprimento da obrigação de alimentos.
À luz do art. 1795.º § 1 do
CCEs, o incumprimento da obrigação de alimentos confere ao alimentista, sem
prejuízo do disposto no art. 1792.º, o direito de exigir o cumprimento da obrigação
de alimentos, incluindo o que já se encontra em falta, ou a resolução do contrato,
com aplicação, em ambos os casos, das regras gerais das obrigações recíprocas.
Acrescenta, logo de seguida o § 2, que, caso o alimentista opte pela resolução,
o devedor de alimentos deve restituir imediatamente os bens que recebeu ao
abrigo do contrato, mas o juiz pode, de acordo com as circunstâncias, determinar
que a restituição que, de acordo com o artigo seguinte, é devida ao devedor de
alimentos, seja adiada no todo ou em parte, em seu benefício, pelo tempo e com
as garantias que se determinem. Curiosamente, esse tal art. seguinte, o art. 1796.º,
prevê que, das consequências da resolução do contrato, deverá resultar para o
alimentista, pelo menos, um excedente suficiente para constituir, novamente,
uma pensão análoga para o resto da sua vida. Temos alguma dificuldade em
compreender esta solução, porque não se consegue antever a duração exata da
vida de uma pessoa e as suas necessidades futuras. Não nos esqueçamos que esta
figura contratual é a primeira de um conjunto que se encontra abrangido pelo
título de los contratos aleatorios o de suerte. O que dos dois preceitos se depreende é
que, se sobre o alimentista impende a obrigação de restituir os alimentos recebidos,
pode acontecer que estes nem sejam restituídos na sua totalidade, se se aplicar
a disciplina do art. 1796.º do CCEs, nem sejam restituídos no mesmo tempo em
que tem que restituir o alimentante, em prol do previsto no art. 1795.º § 2. Tais
prerrogativas, refere-nos RAGEL SÁNCHEZ, não terão lugar quando o contrato
se resolva por causa imputável ao alimentista (Sánchez, 2004: 106).
Muito antes dos espanhóis, os suíços já haviam tipificado um acordo que
apresenta bastantes afinidades com o consagrado nesse ordenamento jurídico.
Previsto na Loi fédérale de 30 de março de 1911 complétant le Code civil suisse (Livre
cinquième : Droit des obligations), o contrat d’entretien viager é definido pelo art. 521.º
1 do, doravante designado, Code des Obligations suíço, como aquele celui par lequel
l’une des parties s’oblige envers l’autre à lui transférer un patrimoine ou certains biens,
contre l’engagement de l’entretenir et de la soigner sa vie durant. Estamos legitimados
a considerar esta relação contratual congénere das anteditas, porque, também
nesta, existe uma troca de algo por cuidados vitalícios.
O catálogo de preceitos disciplinadores deste contrato estende-se do art.
521.º ao art. 529.º do Code des Obligations suíço, sendo que logo, nesse primeiro
95
Com análise acerca da questão vejam-se TORAL LARA (Lara, 2008: 156-159) e BERENGUER
ALBALADEJO (Albaladejo, 2012: 603-609).
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Os acordos com vista à prestação de cuidados vitalícios, p. 189-233
Lusíada. Direito • 27/28 (1.º e 2.º semestre de 2022) 221
preceito, se assinalam diferenças em relação ao regime espanhol. Preceitua
o art. 521.º 2 que [s]i le débiteur est institué héritier du créancier, le contrat est régi
par les dispositions relatives au pacte successoral, o mesmo é dizer, se o devedor for
instituído herdeiro do credor, o contrato será regido pelas disposições relativas
ao pacto sucessório
96
. Esta determinação não encontra espelho no catálogo
normativo espanhol e, entre nós, deparar-se-ia com a parca amplitude atribuída
ao pacto sucessório no art. 2028.º, n.º 2 do CC. Não se verifica, também, uma
terminologia como a espanhola alimentante/alimentista, utilizando-se os termos
débiteur (devedor)/créancier (credor).
No art. 522.º são consagrados requisitos de índole formal, outro aspeto não
expressamente considerado no regime da figura espanhol. O legislador suíço
parece exigir a mesma forma que a dos pactos sucessórios para este contrato,
mesmo que não implique a instituição de herdeiro (art. 522.º 1), reputando como
suficiente [l]a forme sous seing privé no caso de os cuidados serem convencionados
com uma instituição de asilo reconhecida pelo Estado (asile reconnu par l’État) e
nas condições estabelecidas pela autoridade competente (art. 522.º 2).
Segue-se um preceito relativo à garantia do cumprimento – o art. 523.º
estabelece que o credor que transmite um bem imóvel à outra parte conserva,
como garantia dos seus direitos, uma hipoteca legal da mesma forma que um
vendedor – e outro ao objeto do contrato, mormente da prestação de cuidados.
O art. 521.º limita-se a prescrever que sobre o devedor, face à parte credora,
impende l’engagement de l’entretenir et de la soigner sa vie durant. Vai ser no art.
524.º que vamos encontrar a indicação do alcance destes cuidados e da forma a
serem prestados. À luz do art. 524.º 1[l]e créancier vit dans le ménage du débiteur o
que parece implicar a convivência de ambos
97
e, como refere MARIO ZANA, a
aplicação das regras relativas à autorité domestique previstas nos art. 331.º e segs.
do CCSu (Code civil suisse du 10 décembre 1907 – Etat le 1
er
janvier 2021) (Zana, 2005:
97) –; celui-ci lui doit les prestations que la valeur des biens reçus et la condition sociale
antérieure du créancier permettent équitablement d’exiger. Parece que o credor terá
direito às prestações que a sua condição social anterior e o valor dos bens cedidos
ao devedor lhe permitam exigir de forma justa deste último, restando saber o
que significa “permitir exigir de forma justa” (permettent équitablement d’exiger).
O art. 524.º 2 indica que o devedor é, em particular, obrigado a fornecer ao credor
96
Explica-nos BERENGUER ALBALADEJO que no es infrecuente que el contrato se combine con un
pacto sucesorio en virtud del cual el deudor es instituido heredero del acreedor realizándose la atribución de los
bienes a través de un acto mortis causa (Albaladejo, 2012: 134).
97
Explica-nos BERENGUER ALBALADEJO que [c]on un cierto aire de imperatividad establece
el legislador que el acreedor vive «dans le ménage du débiteur», es decir, se incorpora a la unidad familiar del
deudor de forma que se crea entre las partes una especie de comunidad doméstica. Parece estar imponiendo una
obligación de convivencia de las partes. Sin embargo, la doctrina más actual considera que no se trata de una
condición necesaria y que el deudor puede comprometerse a prestar la asistencia en otras condiciones (Albala-
dejo, 2012: 140).
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222 Lusíada. Direito • 27/28 (1.º e 2.º semestre de 2022)
a alimentação e o alojamento adequados, devendo, em caso de doença, fornecer
os cuidados e a assistência médica necessários (en cas de maladie, il lui doit les soins
nécessaires et l’assistance du médecin). Note-se que sendo celebrado com o tal asile
reconnu par l’État, fundado com o objetivo de assegurar a manutenção vitalícia
dos seus residentes, determina o art. 524.º 3 que este asilo pode determinar as
suas prestações de maneira obrigatória para todos, em regulamentos aprovados
pela autoridade competente.
O Code des Obligations suíço preconiza no art. 525.º a salvaguarda daqueles
que podem ser afetados com a celebração do contrato, defluindo o preceito
da epígrafe nullité et réduction. O credor dos cuidados contratuais pode ter
despendido todo o património que tinha com vista à obtenção dos cuidados
vitalícios, usando-o como contrapartida dos cuidados prestados. Ora, como no
ordenamento jurídico português temos estabelecidos deveres legais de alimentos
– veja-se, por exemplo, os alimentos entre cônjuges (art. 1675.º do CC), pais e
filhos (art. 1874.º, n.º 2 do CC) e no art. 2009.º do CC –, na lei suíça também os
98
e tratou o legislador desse ordenamento de salvaguardar a posição destes
outros relativamente aos quais o credor contratual está legalmente obrigado a
prestar alimentos mas não tem meios suficientes para o fazer porque aqueles que
dispunha os empregou na realização do acordo (art. 525.º 1). À luz do art 525.º 2
[l]e juge peut, au lieu d’annuler le contrat, obliger le débiteur à fournir des aliments aux
ayants droit, sauf à imputer ces prestations sur celles dues au créancier. Parece que se
podem gerar duas hipóteses: ou a anulação do contrato (annuler le contrat), ou
o juiz pode obrigar o devedor a prestar os alimentos aos que a eles têm direito,
imputando essas prestações naquelas devidas ao credor no contrato. No art.
525.º 3 salvaguardam-se, ainda, as posições de herdeiros e credores que podem
ver-se negativamente afetados com a celebração do acordo, conferindo-se-lhes
legalmente a possibilidade de lançar mão, respetivamente, da action en réduction
e da action révocatoire des créanciers. Tudo isto dá-nos luzes dos problemas a
enfrentar na tipificação portuguesa. A respeito da action en réduction (art. 522.º e
segs. do CCSu), o art. 527.º 4 do CCSu prescreve expressamente que estão sujeitas
a redução, por causa da morte, como as liberalidades, les aliénations faites par le
défunt dans l’intention manifeste d’éluder les règles concernant la réserve.
Em matéria de extinção do contrato são três os preceitos a ela dedicados
(art. 526.º, 527.º e 528.º), terminando o catálogo normativo no art. 529.º do Code
des Obligations suíço, sob a inscrição incessibilité et réalisation en cas de faillite ou de
saisie. Sem querer ir a fundo na análise destes preceitos, algo extensos, faremos
uma breve referência a questões que chamaram a nossa atenção, da mesma forma
98
Refere-nos BERENGUER ALBALADEJO que las personas frente a las cuales se tiene un deber de
alimentos o asistencia son, entre otras, las mencionadas en los artículos 159, 276 y 328 del Código civil, esto
es, el cónyuge, los hijos y los parientes en línea recta ascendente o descendente siempre y cuando se encuentren
necesitados (Albaladejo, 2012: 147).
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Os acordos com vista à prestação de cuidados vitalícios, p. 189-233
Lusíada. Direito • 27/28 (1.º e 2.º semestre de 2022) 223
que temos feito até este momento.
No art. 526.º é estabelecida uma possibilidade de “denúncia” do contrato
([l]e contrat d’entretien viager peut être dénoncé), nos termos, com o pré-aviso e com
as consequências previstas nesse preceito, quando o valor das prestações das
partes se afigura sensiblement inégale e a parte que receber mais não puder provar
que a outra pretendia fazer uma liberalidade
99
.
Prevê-se no art. 527.º 1 que [c]hacune des parties est autorisée à résilier
unilatéralement le contrat, lorsque la continuation en est devenue intolérable en raison
d’une violation des charges imposées, ou lorsque d’autres justes motifs rendent cette
continuation impossible ou onéreuse à l’excès, o mesmo é dizer que qualquer das
partes tem o direito de dissolver unilateralmente (résilier unilatéralement) o
contrato quando a sua continuação se tenha tornado intolerável devido a uma
violação das obrigações impostas, ou quando outros motivos justos tornem tal
continuação impossível ou excessivamente onerosa. Diz-nos o art. 527.º 2 que,
[s]i le contrat est annulé pour l’une de ces causes, la partie qui est en faute doit, outre la
restitution de ce qu’elle a reçu, une indemnité équitable à celle qui n’a commis aucune
faute, o mesmo é dizer, a parte em falta deve, para além da restituição do que
recebeu, pagar uma indemnização justa à parte que não cometeu qualquer falta.
Acrescenta o art. 527.º 3 que, em vez de anular o contrato (annuler le contrat), o
juiz pode, a pedido de uma das partes ou por sua própria iniciativa, prononcer
la cessation de la vie en commun et allouer au créancier une rente viagère à titre de
compensation, o que significa que pode ditar a cessação da vida em comum e
atribuir ao credor uma renda vitalícia a título de compensação.
No art. 528.º encontramos a solução para os casos de pré-morte do devedor.
É referido no art. 528.º 1 que, ocorrendo a morte do devedor, o credor pode
solicitar la résiliation du contrat no prazo de um ano
100
. Enveredando por essa
via tem o direito de fazer valer contra os herdeiros do devedor une créance égale
à celle qu’il serait autorisé à produire dans la faillite du débiteur (art. 528.º 2), isto é,
um crédito igual ao que lhe caberia em caso de falência do devedor, uma das
99