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DO RECALL POLÍTICO
1
POLITICAL RECALL
L. Barbosa Rodrigues
2
DOI: https://doi.org/10.34628/djqm-w986
Resumo: Esta lição assume como foco o recall político – ou revogação do man-
dato político – visionando-o como uma posição ou situação jurídica ativa, nos ter-
mos da qual os sujeitos individuais detêm a faculdade de, por iniciativa própria,
vincular os poderes públicos à realização de um ato de sufrágio, com a finalidade de
determinar a antecipação do termo do mandato do titular de um órgão eletivo e, em
caso de êxito, a respetiva substituição.
Palavras-chave: Democracia; Representação; Responsabilidade; Responsividade;
Mandato; Recall político – ou revogação do mandato político.
Abstract: This lesson’s focus is the political recall, taking it as a legal active
position or situation, under which the individual subjects have the faculty, on their
own initiative, to link the public powers to a political election, with the purpose of
determining the anticipation of the office term of an elective body holder, and, when
successful, its replacement.
Keywords: Democracy; Representation; Responsibility; Responsivity; Mandate;
recall.
1
Lição proferida no âmbito de provas de agregação em Direito (Direitos Fundamentais e Di-
reitos Humanos), na Universidade Lusíada de Lisboa, em 30/04/2021, perante um júri composto pe-
los Senhores Professores Doutores Afonso d´Oliveira Martins (Reitor da Universidade e Presidente),
Fausto de Quadros (Universidade de Lisboa), Vieira de Andrade (Universidade de Coimbra), Vital
Moreira (Universidade de Coimbra), Vasco Pereira da Silva (Universidade de Lisboa) e Rui Medeiros
(Universidade Católica).
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Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Professor Asso-
ciado com Agregação da Universidade Lusíada.
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Sumário: Introdução. 1. Noção. 2. Natureza jurídica. 2.1. Natureza jurí-
dica geral 2.2. Natureza jurídica específica. 3. Direitos afins. 3.1. Direitos ar-
ticulados com a função política de controlo. 3.1.1. Direito de destituição po-
pular. 3.1.2. Direito de dissolução popular. 3.1.3. Direito de sufrágio referen-
dário derrogativo. 3.1.4. Direito de veto popular. 3.2. Direitos relacionados
com a função política de direção. 3.2.1. Direito de iniciativa popular. 3.2.2.
Direito de sufrágio eleitoral. 3.2.3. Direito de sufrágio referendário constitu-
tivo. 3.2.4. Direito de sufrágio plebiscitário. 3.3. Direitos conexionados com a
função jurisdicional. 3.3.1. Direito de revogação de decisões judiciais. 3.3.2.
Direito de ação popular. 3.4. Direitos políticos atípicos. 4. Institutos próximos.
4.1. Ostracismo. 4.2. Impeachment. 5. Tipologia. 5.1. Quanto ao âmbito. 5.2.
Quanto ao alcance. 5.3. Quanto ao tempo. 5.4. Quanto às causas. 5.5. Quanto
aos pressupostos. 5.6. Quanto às assinaturas. 5.7. Quanto às vicissitudes. 5.8.
Quanto aos efeitos. 5.9. Quanto à articulação com a eleição 6. Fundamentos.
6.1. Fundamentos jurídicos.
6.2. Fundamentos políticos. 7. Vantagens. 7.1.
Controlo, simultâneo, da incompetência e da corrupção. 7.2. Reforço da
participação popular.
7.3. Acréscimo do cumprimento programático. 7.4.
Viabilização da responsividade política. 7.5. Potenciação do alargamento
dos mandatos políticos. 7.6. Racionalização e tutela políticas da ação partidá-
ria. 7.7. Assunção fáctica de um perfil preventivo. 8. Alegadas desvantagens:
refutação. 8.1. Implicaria um mandato vinculado. 8.2. Degradaria a qualida-
de dos representantes. 8.3. Assentaria na ignorância popular. 8.4. Obstaria a
estratégias de longo prazo. 8.5. Poderia converter-se num voto de confiança.
8.6. Transportaria, afinal, maior partidarização. 8.7. Suscitaria problemas em
relação às minorias. 8.8. Implicaria custos acrescidos. 8.9. Fundar-se-ia numa
petição vaga e opaca. 9. Racionalização. 9.1. Fundamentação especificada. 9.2.
Identificação dos proponentes. 9.3. Limites temporais ao exercício do direito.
9.4. Prazo limitado para recolha de assinaturas. 9.5. Período reflexivo entre
petição e votação. 9.6. Moldura criminal agravada. 10. Estados com recall
político. 10.1. Aspetos gerais. 10.2. Reino Unido. 10.2.1. Natureza do recall
político no Reino Unido. 10.2.2. Regime jurídico do recall político no Reino
Unido. 10.2.3. Prática do recall político no Reino Unido. 10.3. Califórnia. 10.3.1.
Natureza do recall político na Califórnia. 10.3.2. Regime do recall político na
Califórnia. 10.3.3. Prática do recall político na Califórnia. 11. De iure cons-
tituendo, Portugal. 11.1. Antecedentes do recall político em Portugal. 11.2.
Exposição de motivos relativa à introdução do recall político em Portugal.
11.2.1. Utilidades. 1.1.2.1.1. Completação da democracia semi-direta. 11.2.1.2.
Resposta à incompetência e combate à corrupção. 11.2.2. Obstáculos. 11.2.2.1.
Mandato livre. 11.2.2.2. Sistema eleitoral proporcional. 11.3. Proposta relati-
va à introdução do recall político em Portugal. 11.3.1. Mandato livre e siste-
ma proporcional. 11.3.2. Natureza jurídica. 11.3.3. Princípios e regime geral.
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11.3.4. Regime específico. 11.3.4.1. Âmbito. 11.3.4.2. Alcance. 11.3.4.3. Tempo.
11.3.4.4. Causas. 11.3.4.5. Pressupostos. 11.3.4.6. Assinaturas. 11.3.4.7. Efeitos.
11.3.4.8. Articulação com a eleição.
Introdução
I – A presente lição tem por objeto o recall político – ou revogação do
mandato político.
Recall político porque concerne somente à função política do Estado, e não –
como seria possível – à sua função administrativa, ou, inclusivamente, à própria
função jurisdicional.
E recall político, igualmente, porque se apresenta autónomo por referência
à – muito anterior – revogação do mandato civil, não obstante a matriz jurídica
elementar partilhada.
II – Estruturalmente, a lição que ora se ministra encontra-se segmentada em
nove tópicos.
O primeiro, de aprofundamento da noção jurídica e de análise da natureza
jurídica.
O segundo, de confronto com direitos afins e com alguns dos institutos
próximos.
O terceiro, de conhecimento desenvolvido da tipologia assumida.
O quarto, de explanação dos seus fundamentos jurídicos e políticos.
Um quinto tópico, no qual que se advogam as respetivas vantagens.
Um sexto, em que se refutam, nominalmente, os alegados inconvenientes.
Um sétimo, sugerindo alguns mecanismos de racionalização jurídico-
política.
Para concluir, um oitavo tópico, examinando a natureza e o regime vigente
nos ordenamentos, estadual nacional do Reino Unido, e estadual federado da
Califórnia.
E, um nono, sustentando a introdução do recall político na Constituição da
República portuguesa, e avançando um seu primeiro perfil jurídico-normativo.
1. Noção
I – Entendemos por recall político a posição ou situação jurídica, nos termos
da qual os mandantes, ou representados, detêm a faculdade de exigir aos seus
mandatários, ou representantes, a realização de um ato de sufrágio, visando a
antecipação do termo do mandato do titular de um órgão político eletivo e, em
caso de êxito, a respetiva substituição.
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II – Logo, numa ótica de Direitos Fundamentais – aquela de que aqui se
cura – o recall político afirma-se, não apenas enquanto um direito, mas enquanto
um direito subjetivo.
Uma faculdade, um poder, uma vontade, uma posição ou situação jurídica
ativa.
Sem prejuízo de, em rigor, configurar não um único direito subjetivo, mas
um cluster de direitos subjetivos.
2. Natureza jurídica
Procederemos à separação entre uma natureza jurídica geral – porque
comum aos Direitos Fundamentais – e uma natureza jurídica específica – porque
relativa somente a este direito.
2.1. Natureza jurídica geral
I – O recall político destaca-se, simultaneamente, como um direito subjetivo,
público, individual, perante o poder e, acessoriamente, os outros indivíduos,
de origem natural, positivado, tipificado, determinado, precetivo, vinculativo,
incondicionado, justiciável, e fundado na dignidade da pessoa humana.
II – É um direito subjetivo, o que significa, na construção dogmática que
privilegiamos, um efeito da vontade, e um corolário da autonomia individual e
da liberdade individual.
III – É um direito público, um direito a exigir do poder um específico
comportamento.
IV – É um direito individual, um direito titulado em exclusivo por sujeitos
singulares, dado que a sua ancoragem diferenciadora é, exatamente, a dignidade
da pessoa humana.
V – É um direito, sobretudo, frente ao poder político, o que presume um
Estado de Direito.
VI – É um direito, também, embora complementarmente, face aos restantes
indivíduos.
VII – E é, ainda, um direito que conhece a sua ancoragem filosófica no
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Direito Natural.
O que significa, não se encontrar na disponibilidade do poder político
consagrá-lo ou recusar a respetiva consagração, mas, tão-somente, declará-lo,
enunciá-lo e regulá-lo.
VIII – É, contudo, um direito positivado, supervenientemente, no Direito
Constitucional.
IX – Mais: é um direito nele tipificado, não uma mera referência de natureza
genérica.
X – É um direito determinado, exigindo identificabilidade das normas
constitucionais.
XI – É um direito precetivo, suscetível de aplicação cumulativamente direta
e imediata.
XII – É um direito vinculativo, adstringindo o poder e os próprios sujeitos
privados.
XIII – É um direito incondicionado, impondo-se ao legislador ordinário e não
dependendo de uma reserva de decisionalidade política, ou de sustentabilidade
financeira.
XIV – É um direito justiciável, pelo que, a recusa representativa do
procedimento de sufrágio, ou o incumprimento da deliberação popular, são
sempre passíveis de tutela.
XV – E, derradeiramente – como todos os outros Direitos Fundamentais – o
recall político encontra a sua escatologia última na dignidade da pessoa humana.
2.2. Natureza jurídica específica
I – No que tange à sua natureza específica, entre os Direitos Fundamentais,
o recall político destaca-se, agora, como um direito-direito e um direito-garantia,
como um direito colegializado, potestativo, extintivo, complexo, de liberdade,
político, e democrático semi-direto.
II – É um direito-direito, porque tem por objeto faculdades do indivíduo
sobre bens, neste caso, sobre bens relativos à participação política.
Mas é também um direito-garantia porque, instrumentalmente, salvaguarda
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o Estado de Direito e o Estado democrático.
III – É um direito colegializado – embora não coletivo – porque só passível
de exercício conjugado com o exercício de direitos idênticos de outros titulares.
IV – É um direito potestativo porque, observados os pressupostos
normativos, o exercício não depende da vontade do poder, mesmo quando exista
intervenção judicial.
V – É um direito extintivo, porque, se bem-sucedido, faz cessar uma pré-
estabelecida relação de mandato político entre mandatário e mandante.
VI – O recall político é, ainda, um direito complexo, e inclusivamente, o mais
complexo de entre os direitos políticos, na medida em que agrega um direito de
iniciativa popular, um direito de sufrágio plebiscitário, e um direito de sufrágio
eleitoral.
VII – É, sob qualquer dos seus possíveis ângulos, um direito político, um
direito de liberdade do indivíduo, mas de um indivíduo parte da polis.
VIII – Por último, é, e é inquestionavelmente, um direito democrático e um
direito democrático semi-direto.
Um direito que não pode sediar-se nem na democracia indireta nem na
democracia direta.
Um direito que, apesar de conter em si um mecanismo de democracia
indireta, a própria eleição, extravasa esse domínio.
E um direito que não se inscreve na – por certo, mais exigente – democracia
direta.
3. Direitos afins
Os direitos afins do recall político assumem tipologias distintas, apesar de
emergirem como Direitos Fundamentais, como direitos de liberdade, e como
direitos políticos.
Uns, na sua imediata esteira, apresentam-se negativos e incluíveis na função
política de controlo, outros, desenham-se positivos e inseríveis na função política
de direção.
Em alguns casos, ainda, relacionam-se com a função jurisdicional, ou,
finalmente, têm natureza sui generis, porque se a iniciativa é popular, a decisão
não o é, ou vice-versa.
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3.1. Direitos articulados com a função política de controlo
Examinemos, primeiramente, os direitos relacionados com a função política
de controlo.
Entendendo, em termos muito gerais, por função política de controlo,
dentro da função política do Estado, uma sub-função, mais tipicamente, negativa,
extintiva ou reversiva.
3.1.1. Direito de destituição popular
A destituição popular aparta-se do instituto examinando porque
compreende, ela própria, tanto o recall político – a revogação do mandato político
– quanto a dissolução popular.
3.1.2. Direito de dissolução popular
A dissolução popular, por seu turno, refere-se a um órgão colegial, no
inerente conspecto, ao passo que o recall político se reporta, tão-somente, a um
mandato individual.
3.1.3. Direito de sufrágio referendário derrogativo
O referendo político dirige-se, neste caso, a um ato vigente, intentando a
sua revogação.
Porém, mesmo nesta valência, exibe natureza objetiva, face a um recall
político de carácter subjetivo.
3.1.4. Direito de veto popular
O veto popular afasta-se do recall político porque incide sobre atosmelhor,
incide sobre atos futuros ou atos virtuais – e não sobre pessoas ou sobre mandatos.
3.2. Direitos relacionados com a função política de direção
Visualizemos, agora, os direitos afins mais relacionados com a função
política de direção.
Entendendo, em termos gerais, por função política de direção – ou de
indirizzo político – uma função motriz, de decisão nuclear, assumindo conteúdo,
essencialmente, positivo.
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3.2.1. Direito de iniciativa popular
Enquanto direito autónomo, a iniciativa popular ostenta um perfil
diretivo, porquanto positivo, e uma matriz objetiva, dado que se reporta a atos –
referendários ou legislativos.
Mas, se integrada no cluster do direito de revogação do mandato, assume,
então, opostamente, um cariz negativo, de controlo, e uma matriz subjetiva,
relativa a pessoas.
3.2.2. Direito de sufrágio eleitoral
Igualmente, o sufrágio eleitoral, o direito de escolha dos representantes,
ergue-se enquanto direito autónomo, enquanto mecanismo de democracia
indireta.
Porém, no quadro do procedimento de revogação, ostenta jaez semi-direto.
Na realidade, o recall não se esgota, nem na cessação do mandato, nem, tão-
pouco, na vacatura do cargo, estando-lhe associada, indelevelmente, a ulterior eleição.
3.2.3. Direito de sufrágio referendário constitutivo
O referendo positivo assume – em linha com o anterior, o referendo negativo
– uma essência objetiva, ao invés do recall, cuja matriz é, necessariamente,
subjetiva.
3.2.4. Direito de sufrágio plebiscitário
Juridicamente, não existe separação entre o direito de referendo e o direito
de plebiscito.
Embora, politicamente, seja qualificável como referendária a intervenção
popular de morfologia estruturalmente objetiva, ou normativa, e designável
como plebiscitária a intervenção popular que assume cariz prevalecentemente
subjetivo, ou personalizado.
3.3. Direitos conexionados com a função jurisdicional
3.3.1. Direito de revogação de decisões judiciais
O recall judicial consubstancia-se na faculdade atribuída – raramente –
aos sujeitos individuais de procederem à cassação de decisões emanadas dos
Tribunais.
Diferenciando-se do recall político, quer porque respeita à função
jurisdicional, quer porque incide sobre atos e não sobre pessoas.
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3.3.2. Direito de ação popular
A ação popular não é um procedimento político, mas um processo sediado
nos tribunais.
Acrescendo que, os interesses tutelados ostentam uma vocação objetiva e
não subjetiva.
3.4. Direitos políticos atípicos
Direitos atípicos, ou porque, mesmo existindo iniciativa popular, a
deliberação final não exibe semelhantes características (casos das Constituições
da Virgínia e da Colômbia).
Ou, direitos atípicos porque, ainda que seja popular a deliberação
revogatória final, o mesmo não se observa em termos de iniciativa (Constituições
de Weimar e da Áustria).
4. Institutos próximos
4.1. Ostracismo
O ostracismo consubstancia não – ou não apenas – democracia semi-direta,
mas direta.
De facto, tanto a iniciativa, quanto a deliberação, exibem uma configuração
imediata.
4.2. Impeachment
A afinidade resulta, aqui, da perda de um mandato, com origem popular, e
cariz político.
Não obstante, o impeachment é um poder funcional e não é um direito
fundamental, porquanto inexiste intervenção popular, quer em sede de iniciativa,
quer de decisão final.
Acresce que o recall político exibe um alcance subjetivo mais alargado do
que o impeachment, ao integrar, potencialmente, qualquer possível titular de
órgãos eletivos.
5. Tipologia
A diferenciação tipológica revogatória prende-se com o âmbito, alcance,
tempo, causas, pressupostos, assinaturas, vicissitudes, efeitos, e articulação com
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a inerente eleição.
5.1. Quanto ao âmbito
O recall político é suscetível de se apresentar estadual, estadual federado,
ou regional.
Mas, mais tipicamente, emerge apenas em alguns desses âmbitos, ou, até,
num único.
5.2. Quanto ao alcance
Inusualmente, alarga-se à globalidade dos titulares eletivos, usualmente,
apenas a parte.
5.3. Quanto ao tempo
Há modelos nos quais é consentida a todo o tempo, e modelos que
estabelecem limitações.
De onde, em alguns observa-se a exclusão da revogação na fase inicial do
mandato, em outros a exclusão na fase final, e noutros, ainda, uma exclusão em
ambos os momentos.
Existem igualmente modelos que obstaculizam uma segunda iniciativa
revogatória no decurso do mesmo mandato, ou que a vedam durante um período
subsequente definido.
5.4. Quanto às causas
As soluções apresentadas pelo Direito Comparado nesta sede afiguram-se
muito distintas.
Indo desde a inexistência de menção expressa às causas, à previsão das
duas causas mais típicas, passando pela referência normativa a algumas causas
específicas ou localizadas.
No que se refere às mais típicas, destacam-se, sobretudo, a incompetência e
a corrupção.
Mas, a falta de saúde, física ou mental e a condenação penal, emergem com
frequência.
5.5. Quanto aos pressupostos
Ou se admite a revogação independentemente de quaisquer pressupostos,
o total recall.
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Ou se faz a iniciativa popular de revogação depender da verificação de
requisitos, quer de natureza legal, quer jurisdicional, quer inclusive do foro
parlamentar, o partial recall.
5.6. Quanto às assinaturas
Por vezes, há uma exigência mínima de dez por cento dos eleitores,
agilizando o uso do direito, noutras, exige-se uma percentagem alargada,
emergindo como obstáculo a tal uso.
O método da recolha de assinaturas pode ser dinâmico, ocorrendo na rua
e porta a porta, com realização por voluntários ou por profissionais, ou estático,
em edifícios públicos.
No que tange ao prazo para a recolha dessas assinaturas, pode o mesmo
existir ou inexistir, e ir de um mínimo de sessenta dias até a um máximo de
duzentos e setenta dias.
5.7. Quanto às vicissitudes
Desenhando-se o recall político procedimentalizado, as vicissitudes tornam-
se plausíveis.
Enquanto mais típicas desenham-se a marcação de novos atos eleitorais para
o órgão do revocável, o impeachment, a demissão voluntária, a incapacidade física
ou psíquica, ou morte daquele revocável, bem como, a não-reunião do número
de assinaturas exigido.
5.8. Quanto aos efeitos
Paradigmaticamente, a figura em exame ostenta matriz vinculativa,
implicando a remoção do cargo, embora, excecionalmente, conheça um perfil
consultivo, o advisory recall.
Efeitos complementares, traduzem-se na proibição de uma candidatura
imediata ou futura do revocado, a esse cargo, frequentemente a diferentes cargos
– e até mesmo a todos eles.
5.9. Quanto à articulação com a eleição
A eleição do sucessor do revocado, a eleição designatória, tanto pode
vislumbrar-se autonomizada da cessação do mandato, como ocorrer em
simultâneo com essa cessação.
E, outrossim, esta eleição pode permitir, ou não permitir, uma candidatura
do revocável.
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6. Fundamentos
Apreciemos, agora, os fundamentos do recall político.
Mais relevantemente, decerto, os fundamentos jurídicos.
Mas, não despicientemente, os fundamentos políticos.
6.1. Fundamentos jurídicos
I – O fundamento estruturante é de natureza intrinsecamente jurídica, e,
mais, de natureza puramente lógico-jurídica.
De facto, da criação de um mandato decorre, e tem de decorrer, a
possibilidade de o fazer cessar.
Quem é titular de um direito de eleger outrem, de mandatar outrem, tem
de ser titular, por uma estrita identidade de razão, de um direito de deseleger, de
desmandatar, esse outrem.
A revogabilidade, ou mesmo, uma absolutamente livre revogabilidade,
afirma-se, assim, por consequência, como uma das características elementares do
instituto do mandato.
Uma figura designada mandato, mas irrevogável, não é, de todo em todo,
um mandato.
Tanto mais que, o representante não detém qualquer legitimidade própria,
qualquer poder independente do representado, é, tão-somente, o mandatário do
mandante, do Soberano.
Concomitantemente, admitir, no plano jurídico e no plano jurídico-
principial, a irrevogabilidade do mandato político, equivaleria a travestir o
servidor no senhor.
II – Acresce que quem mandata, e quem mandata politicamente, mandata
com um fim.
E esse fim é, ou a representação dos seus interesses, ou a representação dos
seus valores.
Ora, caso aqueles interesses, ou, sobretudo, estes valores, sejam,
manifestamente, improsseguidos, ignorados, preteridos, vilipendiados,
corrompidos, torna-se abstruso exigir a submissão do mandante ao – presuntivo
– mandatário, até ao termo desse mandato.
Isto é, verificada a existência de justa causa, ou de uma justa causa
evidente, a irrevogabilidade do mandato político configura-se insuscetível de
fundamentação lógica.
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6.2. Fundamentos políticos
I – Os fundamentos do recall político revestem, cumulativamente, uma
natureza política.
Decorrendo da exigência, popular, de uma democracia mais madura, mais
efetiva, mais proactiva, mais responsiva, de uma democracia, indubitavelmente,
mais democrática.
E, por essa razão, com impedimento de modelações, de facto, incompetentes,
ou mesmo, porventura, corruptas, apesar de uma matriz jurídico-política
formalmente democrática.
II – Na realidade, uma democracia efetiva não exige apenas mecanismos
democráticos de designação dos representantes.
Uma efetiva democracia postula, inseparavelmente, mecanismos
democráticos de controlo destes representantes.
Ora, entre os meios semi-diretos de controlo, o recall destaca-se, claramente,
por propiciar a existência de um controlo total e de um controlo permanente.
Emergindo, assim, como o mais eficaz e eficiente instrumento de
responsividade política.
7. Vantagens
São múltiplas, democraticamente impressivas, e sobrepondo-se de uma
forma inequívoca aos eventuais deméritos, as utilidades resultantes do recall
político.
7.1. Controlo, simultâneo, da incompetência e da corrupção
Em primeiro lugar, permite controlar fenómenos, progressivamente mais
graves e mais alargados, quer de incompetência, quer de corrupção, quer, em
simultâneo, de incompetência e de corrupção.
Licitando uma intervenção imediata, e com o recurso a um procedimento
informalizado.
Emergindo, assim, ora como uma alternativa simplificada ao impeachment, ora,
noutros circunstancialismos, como um instrumento mais expedito face a um processo
jurisdicional, usualmente interminável e, não menos frequentemente, kafkiano.
7.2. Reforço da participação popular
Em segundo lugar, potencia o interesse da comunidade pela participação
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política, o que impulsiona uma maior aquisição de informação, de onde, uma
melhor cidadania.
7.3. Acréscimo do cumprimento programático
Em terceiro lugar, comprime o tradicional incumprimento programático
entre sufrágios.
Um incumprimento resultante, tanto da natureza livre do mandato, como –
para os efeitos aqui em exame – da tenure que decorre da irrevogabilidade desse
mesmo mandato.
7.4. Viabilização da responsividade política
Em quarto lugar, viabiliza uma contínua e, sobretudo, efetiva,
responsivização política.
Que se não confunde com a, muito mais ténue e terminal, responsabilização
política.
7.5. Potenciação do alargamento dos mandatos políticos
Em quinto lugar, pode induzir um alargamento dos mandatos políticos,
determinando, assim, não o aumento dos custos eleitorais, mas um seu
significativo desagravamento.
7.6. Racionalização e tutela políticas da ação partidária
Em sexto lugar, implica uma assinalável compressão da intervenção
partidária estadual.
De um lado, porque obsta à gestão partidocrática dos ciclos eleitorais, ao
eleitoralismo financeiro e, pior, à tradicional aquisição de votos junto de um feixe
seletivo de minorias.
De outro, porque torna necessária uma seleção e uma seriação internas
mais exigentes dos candidatos a sufrágio, dado que estes estão mais expostos e
vulneráveis face ao Povo.
7.7. Assunção fáctica de um perfil preventivo
Em sétimo e derradeiro lugar, a mera previsão, a mera passibilidade de
utilização deste direito, é, normalmente, suficiente para uma obtenção dos efeitos
políticos pretendidos.
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Não por acaso, é referido, na doutrina anglo-saxónica, como the gun behind
the door.
8. Alegadas desvantagens: refutação
8.1. Implicaria um mandato vinculado
I – Afirma-se que o recall político implicaria a configuração de um mandato
vinculado.
Ocorre que, o mandato vinculado se refere à presença inicial de instruções,
enquanto a revogação se prende com a responsividade, intervindo sempre num
momento ulterior.
Mais: nos ordenamentos em que há revogação do mandato, semelhante
mandato é livre.
II – Diz-se, conexamente, que suscitaria a cessação da independência dos
representantes.
Ora, o problema é exatamente o contrário, porque os representantes,
os mandatários, não devem, em caso algum, ser independentes dos seus
representados, dos seus mandantes.
8.2. Degradaria a qualidade dos representantes
Refere-se, igualmente, que o seu acolhimento degradaria a qualidade dos
representantes.
A verdade, porém, é que a representação política vem conhecendo um
manifesto défice de qualidade, mormente nas derradeiras décadas, sem que se
preveja o recall político.
E, sobretudo, por mais qualificados que sejam – ou fossem, quiçá – esses
representantes, não devem sobrepor-se, em circunstancialismo algum, aos
próprios titulares da soberania.
8.3. Assentaria na ignorância popular
Mais se refere, correspondentemente, que encontraria ancoragem na
ignorância popular.
Mas tal argumento, além de anti-democrático e elitista, revela-se,
notoriamente, absurdo.
De um lado, porque se os eleitores são, no mínimo, capacitados para eleger
os representantes, torna-se incompreensível que se apresentem incapazes de os
deseleger.
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E, de outro lado, porque, atenta a universalização do sufrágio, não existem
quaisquer garantias de que os representantes sejam menos ignorantes do que os
seus representados.
8.4. Obstaria a estratégias de longo prazo
Aduz-se, analogamente, que a respetiva previsão inviabilizaria estratégias
de longo prazo.
Esquece-se que, se os mandatários cumprirem, ou se estiverem em curso
de cumprir, o seu programa eleitoral, a iniciativa de revogação ou o respetivo
sucesso não acontecem.
8.5. Poderia converter-se num voto de confiança
Sugere-se, ainda, que a revogação poderia metamorfosear-se de instrumento
de censura em voto de confiança.
E esta asserção não é falsa, mas só ocorrerá caso o procedimento seja
infundamentado.
Demonstrando, aliás, que a democracia semi-direta é passível de funcionar
em dois sentidos, ou punindo o candidato a revogado, ou punindo os promotores
dessa revogação.
8.6. Transportaria, afinal, maior partidarização
Uma alegação complementar é de que, no fim, conduziria a uma maior
partidarização.
Podendo converter-se num mecanismo adicional de ação e de manipulação
partidárias.
E, designadamente, ser passível de utilização enquanto modo de
contestação, ou de tentativa de reversão, dos resultados eleitorais, no decurso de
um subsequente mandato.
Todavia, na prática usual, os eleitores ignoram as revogações de mandato
partidarizadas.
8.7. Suscitaria problemas em relação às minorias
Outro argumento ainda, emergiria da conexão, problemática, entre
revogação e minorias.
De um lado, porque colocaria em causa os alegados direitos de algumas
dessas minorias.
De outro lado, porque seria instrumentalizável por minorias circunscritas,
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embora ativas.
Ora, a democracia pode sempre colocar em risco direitos de minorias,
porque a eleição de órgãos singulares é maioritária, porque os mais democráticos
sistemas eleitorais parlamentares – os anglo-saxónicos – são maioritários, e
porque o referendo é maioritário.
E, é certo que essas minorias, porquanto minoritárias, não logram a
revocação pretendida.
8.8. Implicaria custos acrescidos
O recall político, aduz-se ainda, transportaria custos agravados – e, quiçá,
voluptuários.
Não obstante, se é um facto que a democracia assume custos, e custos
elevados, não deixa de se preferível que semelhantes custos sejam inerentes à
expressão da vontade popular.
Acrescendo que, se a duração dos mandatos for alargada, ocorrerá
exatamente o oposto.
8.9. Fundar-se-ia numa petição vaga e opaca
O último argumento contrário ao recall político sugere que este se ancora
numa petição vaga, no domínio objetivo, e, em simultâneo, numa petição opaca,
no conspecto subjetivo.
Contudo, sempre poderá afirmar-se que essa petição revogatória ostenta
uma clareza política objetiva acrescida por referência à do próprio ato original de
eleição do revocado.
Ou, sempre poderá aduzir-se que, sempre que o Povo, que o Soberano,
delibera, não lhe é exigível que fundamente essa deliberação e, muito menos,
perante os seus servidores.
9. Racionalização
Atentemos, agora, em alguns mecanismos de racionalização e
aperfeiçoamento do direito.
9.1. Fundamentação especificada
O primeiro mecanismo traduz-se na exigência de uma fundamentação
especificada.
Construção gizada para o melhor conhecimento das motivações de cada
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iniciativa.
9.2. Identificação dos proponentes
O segundo, consiste na identificação, ou numa mais completa identificação,
dos autores.
Procurando desse modo garantir maior transparência, através da
identificação dos promotores e, sobretudo, dos financiadores.
9.3. Limites temporais ao exercício do direito
O terceiro, consubstancia-se na determinação de limites vários, relativamente
ao tempo.
Visando impedir a instabilidade política ou, até – dir-se-ia – uma revolução
permanente.
Podendo emergir sob a forma de impedimento da realização da revogação,
ou no início do mandato, ou na proximidade do termo desse mandato, ou em
ambos os momentos.
Podendo, igualmente, plasmar-se na insusceptibilidade de nova iniciativa
antes de decorrido um certo prazo sobre a anterior, bem como num número
limitado de iniciativas.
E, finalmente, podendo revelar uma solução engenhosa – e invulgar – na
qual o período do mandato é alargado, mas o recall só se torna viável após o
decurso de parte do mesmo.
9.4. Prazo limitado para recolha de assinaturas
O quarto, reflete-se na fixação de um prazo circunscrito para a recolha de
assinaturas.
Pretendendo afastar o espectro de uma indefinição funcional excessivamente
alargada.
9.5. Período reflexivo entre petição e votação
O quinto, estabelece um possível cool off, um prazo de reflexão a anteceder
a votação.
Conducente a uma reflexão-balanço sobre o momento anterior e a escolha
subsequente.
9.6. Moldura criminal agravada
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O sexto, prescreve um conspecto sancionatório tão reforçado quanto
necessário.
Penalizador de ilícitos graves, sobretudo quanto à fase da recolha de
assinaturas.
10. Estados com recall político
10.1. Aspetos gerais
I – Recenseemos agora os ordenamentos estaduais que contemplam o
recall político, e outrossim, os critérios de seleção adotados para uma análise
aprofundada de dois deles.
II – São 29 os Estados que consagram, hoje, o direito de revogação do
mandato político.
Não obstante, no âmbito nacional, só a Polónia (1991), a Roménia (1991),
o Equador (1998), a Venezuela (1999), a Bolívia (2008), e, recentemente, o Reino
Unido (2015).
E, no âmbito estadual federado, apenas os Estados Unidos (1902) e a
Alemanha (1993).
III – Trataremos, primeiro, do recall previsto no Reino Unido para os
Membros do Parlamento, ou melhor, para os titulares da Câmara dos Comuns.
Desde logo, porque o Reino Unido se afirma como a terra-mãe da democracia
moderna.
Depois, porque se destaca como o primeiro ordenamento europeu a
estabelecer este direito no âmbito nacional – regulando-o, aliás, de uma forma
invulgarmente exaustiva.
Em último, porque se observa a existência de uma prática, não apenas
numericamente saliente – com três recalls, em apenas três anos – como bem-
sucedida – duas revogações.
IV – Examinaremos, subsequentemente, o recall político nos Estados Unidos
da América, embora apenas no âmbito federado e, em particular, no Estado da
Califórnia.
Em primeiro lugar, porque é nesse Estado, e mais especificamente, na sua
maior cidade, Los Angeles, que se encontram as raízes modernas da revogação
do mandato político.
Em segundo lugar, porque a Califórnia, mesmo assumindo uma natureza
federada, é – e por larga margem – o Estado americano mais populoso (com 40
milhões de cidadãos).
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Em terceiro lugar, porque é o modelo que se apresenta mais semi-direto,
mormente, em que o número de assinaturas exigido é mais baixo, em que os
limites – sobretudo temporais – são quase-inexistentes, e em que a cessação surge
agregada à nova eleição.
Em quarto lugar, porque é o Estado federado no qual se observa um
número mais elevado, e mais pertinente, de experiências, sendo o que regista,
também, ao nível político do Governador do Estado, uma revogação de mandato
de realização mais recente (2003).
V – É certo que, ao lado do modelo político de Estado de Direito, de Estado
democrático, de Direitos Fundamentais, paradigmático dos Estados Unidos da
América ou do Reino Unido, esta figura existe num outro modelo, radicalmente
contrário, o modelo comunista.
Porém, neste caso, o recall político, ainda que extensivo à integralidade
dos titulares eletivos, não reveste qualquer significado em sede de
Direitos Fundamentais, considerada a inexistência de Estado de Direito, e,
cumulativamente, de Estado democrático.
10.2. Reino Unido
10.2.1. Natureza do recall político no Reino Unido
O direito contido no Recall MP´s Act 2015 corresponde à revogação do
mandato político.
Efetivamente, quer a iniciativa, quer a decisão, revestem uma necessária
natureza popular, não dependendo, nem de uma deliberação, nem de uma
decisão, representativas.
A única especificidade consiste no facto de o desencadeamento implicar
o preenchimento de uma de três condições, detalhadamente estabelecidas,
configurando um partial recall.
E inibindo, assim, um juízo pleno de mérito, já que a revogação não deve
só antecipar o termo do mandato de delinquentes, mas antecipar o termo do
mandato de incompetentes.
10.2.2. Regime jurídico do recall político no Reino Unido
I – O recall de um membro da Câmara dos Comuns é juridicamente
necessário, caso se verifique uma de três, distintas e tipificadas, condições.
A primeira é que o Deputado seja condenado ou sentenciado, a prisão ou a
detenção.
A segunda é que a Câmara dos Comuns decida a suspensão do respetivo
mandato.
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A terceira é que o Deputado, seja condenado ao abrigo do MP Standards Act
2009 (maxime, fornecimento de informações falsas ou enganosas para pedidos de
subsídios).
II – Sempre que tome conhecimento de que uma das condições ocorre, o
Speaker notifica, obrigatoriamente, o funcionário responsável pelas petições na
circunscrição do Deputado.
O qual fixa o dia a partir do qual uma petição é disponibilizada, para
assinatura, e, simultaneamente, designa o correspondente local, ou os locais,
num máximo de dez.
A assinatura é presencial, ou por via postal, ou através de procuração, mas
não on line.
III – O documento contendo a petição inclui o seguinte formulário: “Ao
assinar, assino uma petição para que [nome do Deputado], o Deputado por [nome do
círculo eleitoral], perca o seu lugar na Câmara dos Comuns”.
IV – Findo o prazo para assinaturas, o funcionário notifica o Speaker de que
a petição revogatória foi, ou bem-sucedida, ou mal-sucedida, dando publicidade
a esse resultado.
A petição considera-se bem-sucedida quando o número de eleitores que
a assinam validamente é, no mínimo, dez por cento do número de eleitores
registados nesse círculo.
Logo que o funcionário notifica o Speaker do sucesso, o lugar do Deputado
fica vago.
V – Por último, ocorre a eleição intercalar, cuja data, nos termos de costume
parlamentar geral – que não da lei – é determinada pelo partido que integra o
Deputado revocado.
10.2.3. Prática do recall político no Reino Unido
I – Desde março de 2016 – data da entrada em vigor do Recall MP´s Act
2015 – visualizam-se três procedimentos sucessivos, embora com fundamentos
assinalavelmente distintos.
II – O primeiro (2018) incide sobre Ian Paisley, MP por North Antrim
(Irlanda do Norte).
O fundamento reside na respetiva suspensão pela Câmara dos Comuns,
em razão do exercício de advocacia paga, fora do território britânico, sem
comunicação das deslocações, bem como, dos inerentes benefícios, preenchendo
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a segunda condição.
Mas a petição não atinge a percentagem mínima de assinaturas exigida
(apenas 9,4 %).
III – O segundo recall (2019) impende sobre Fiona Onasanya, MP por
Peterborough.
O fundamento é a sua prisão, por um período inferior a um ano – no caso,
três meses – após um ilícito rodoviário, acionando a primeira condição.
E o procedimento é bem-sucedido, pela primeira vez, quer na história
constitucional britânica quer, naturalmente, na própria história constitucional
europeia.
Com um total de 28% de assinaturas, o cargo parlamentar é declarado vago,
realizando-se a eleição intercalar meses mais tarde.
IV – O terceiro (2019) ocorre com Christopher Davies, MP por Brecon e
Radnorshire.
O fundamento é, precisamente, o que origina a consagração do recall político
no Reino Unido, a existência de faturas falsas relativas a despesas, integrando a
terceira condição.
E, pela segunda vez, tem êxito, com a assinatura da petição por 19% dos
eleitores, o sufrágio intercalar a realizar-se, e a posse do novo MP a ocorrer em
setembro de 2019.
10.3. Califórnia
10.3.1. Natureza do recall político na Califórnia
O modelo adotado no Estado da Califórnia é, de modo diametralmente
oposto ao do Reino Unido, o modelo paradigmático, o total recall.
Surgindo, dessa forma, mais consonante com o arquétipo da democracia
semi-direta.
10.3.2. Regime do recall político na Califórnia
I – A Constituição da Califórnia exibe um modelo de governo democrático
semi-direto, associando, num único preceito (art. II), a iniciativa popular, o
referendo, e o recall.
Mais: afirma que todo o poder político é inerente ao Povo, e que, se o governo
é instituído para a proteção, a segurança e o benefício do Povo, por consequência,
sempre que o bem público exigir, esse Povo possui o direito de alterá-lo, ou de
reformá-lo.
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II – Este texto caracteriza o recall de uma forma remarcavelmente ampla,
como o poder, detido pelos eleitores, de remover o titular de um cargo eletivo.
Logo, de qualquer cargo eletivo, e de qualquer função do Estado, e de
qualquer âmbito.
O que, no que tange ao poder judicial, não é irrelevante, dado que a sua
designação, através de um mecanismo eleitoral, é, aqui, a regra e não a exceção.
III – Nesta situação, não existem quaisquer limitações temporais à iniciativa
revogatória.
O procedimento é desencadeado com a entrega, ao Secretário de Estado, de
uma iniciativa popular, enunciando o fundamento da revogação.
Fundamento esse que não é suscetível de qualquer aferição, nem de mérito,
nem de legalidade, nem, no limite, de constitucionalidade – quiçá, de matriz
jurisdicional.
IV – Abre-se, então, um prazo de cento e sessenta dias para a recolha de
assinaturas, em exclusivo no espaço público, ou através de voluntários, ou com
o recurso a profissionais.
Em geral, a subscrição da iniciativa deve reunir um mínimo de 12% dos
votantes na última eleição para o cargo, o número menos elevado do recall nos
Estados Unidos.
Excecionalmente, quanto a Senadores, membros da Assembleia e juízes dos
Tribunais de recurso e primeira instância, o número mínimo de assinaturas é de 20%.
V – Caso sejam reunidas as assinaturas, o Governador do Estado convoca,
num prazo de sessenta a oitenta dias, a eleição revogatória e, em simultâneo, a
eleição designativa.
O revocável não pode ser candidato – como não pode, aliás, ser candidato
a outros cargos.
VI – Se a maioria dos votos é no sentido da revogação do mandato, o titular
é removido.
E, existindo vários candidatos, o mais votado torna-se o sucessor, não se
definindo, pois, nenhum tipo de quorum participativo.
VII – Em contrapartida, se a cessação não ocorre, o titular do cargo é
reembolsado, pelo próprio Estado, das despesas legais e pessoais realizadas.
VIII – Finalmente, nenhum outro procedimento, contra o mesmo titular,
pode ser iniciado nos seis meses subsequentes.
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10.3.3. Prática do recall político na Califórnia
I – Os Estados Unidos da América, maxime, o Estado da Califórnia, surgem
– histórica e hodiernamente – como a sede do maior número de recalls do mundo.
Mas, no âmbito estadual federado, apresenta-se infrequente, em razão do
número de assinaturas necessário e do típico voluntariado.
Consequentemente, só dois casos, com êxito, justificam uma referência
neste excurso.
O primeiro, o do Governador do Estado do Dakota do Norte, Lynn Frasier
(1921), e o segundo, precisamente no Estado da Califórnia, o do Governador
Gray Davis (2003).
II – O recall do Governador da Califórnia, Gray Davis, encontra fundamento
em questões de natureza financeira, mormente, orçamentais.
O procedimento revocatório caracteriza-se pela acentuada dimensão do
universo eleitoral, com quase quinze milhões de inscritos e quatro milhões e
meio de votantes.
Mas destaca-se, analogamente, pelo elevado número de candidaturas ao cargo.
III – O procedimento é bem-sucedido, e, não obstante alguma dispersão, o
seu substituto, Arnold Schwarzenegger, obtém 48,6 % dos votos.
Uma votação superior à obtida pelo revocado, aquando da sua original
eleição.
IV – O recall político analisando, em razão das suas características mediáticas,
faz reavivar o interesse por um direito político semi-direto longamente
adormecido, originando uma sobre-multiplicação de iniciativas.
Se bem que, não envolvendo o cargo, simbólico, de Governador do Estado.
11. De iure constituendo, Portugal
De iure constituendo, sustentamos, vivamente, a introdução do recall político
na Constituição portuguesa.
Não ignorando, naturalmente, que semelhante mutação constitucional,
a ocorrer em Portugal, terá sempre de emergir da sociedade civil, nunca dos
partidos políticos.
11.1. Antecedentes do recall político em Portugal
Na história constitucional portuguesa, este direito político nunca esteve
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previsto – mormente na Constituição de 1911 – nem, tão-pouco, se conhecem
quaisquer propostas.
11.2. Exposição de motivos relativa à introdução do recall político em
Portugal
Consideremos, sucessivamente, as utilidades apresentadas, e os principais
obstáculos.
11.2.1. Utilidades
1.1.2.1.1. Completação da democracia semi-direta
I – Desde logo, permitiria completar a clássica triologia democrática semi-
direta, integrada pelo referendo político, pela iniciativa popular, e pelo recall
político.
II – De facto, a Constituição recorta já um sistema de governo de democracia
semi-direta.
Em primeiro lugar, porque, nos seus princípios fundamentais, afirma que
a República se funda na vontade popular, que o Estado se ancora na soberania
popular e que esta encontra tradução no aprofundamento da democracia
participativa (arts. 1º e 2º).
Em segundo lugar, porque, nos princípios gerais de organização do poder
político, alude à participação direta e ativa dos cidadãos na vida política, referindo
que esta constitui um instrumento fundamental de consolidação da democracia
(art. 109º).
Em terceiro lugar, porque, no quadro dos direitos, liberdades e garantias
políticos, estatui que os cidadãos têm direito a tomar parte na vida política e
na direção dos assuntos públicos, por intermédio de representantes eleitos, ou
diretamente (art. 48º).
Em quarto lugar, porque prevê a existência de um referendo político, tanto
de âmbito nacional (art. 115º), como de âmbito regional (art. 232º, nº 2) – bem
como, complementarmente, de um referendo administrativo, de incidência local
(art. 240º).
Em quinto lugar, e não menos relevante, porque o referendo se articula com
um possível desencadeamento por iniciativa popular (arts. 115º, nº 2 e nº 13, 232º,
nº 2, e 240º).
Em sexto lugar, porque esta se alarga a uma iniciativa popular legislativa
(art. 167º).
E, em sétimo lugar, porque estabelece a petição (art. 52º) e a ação popular
(art. 52º).
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Mais: porque reveste dignidade constitucional – embora enquanto
democracia direta – o plenário dos cidadãos eleitores, nas freguesias de população
reduzida (art. 245º, nº 2).
11.2.1.2. Resposta à incompetência e combate à corrupção
I – Depois, para além da completação da democracia semi-direta, traduzir-
se-ia num mecanismo útil de resposta à incompetência e de combate à corrupção.
Efetivamente, o Portugal contemporâneo apresenta, quer sinais manifestos
de uma incompetência política crescente, quer indícios sérios de uma corrupção
endémica.
Fenómenos gerados, ambos – sem surpresa – pela partidocratização extrema.
II – Preferível seria que a figura do recall fosse introduzida, inicialmente, no
âmbito local.
Contudo, a situação política observável exige medidas, não apenas eficazes,
como céleres, afigurando-se impensável aguardar por duas sucessivas revisões
constitucionais.
11.2.2. Obstáculos
11.2.2.1. Mandato livre
I – O primeiro óbice emerge do mandato, livre, dos presuntivos
representantes nacionais.
II – Efetivamente, o Presidente da República representa a própria República,
em abstrato, e não, em absoluto rigor, os eleitores (art. 120º).
De igual modo, os Deputados exercem, livremente, o respetivo mandato
(art. 155º, nº 1).
E, quanto ao Primeiro-Ministro, a questão nem sequer se suscita, porque,
emanando de nomeação (art. 187º, nº 1), não detém, em termos técnico-jurídicos,
um mandato.
III – Ora, essa liberdade não determina apenas a inexistência de mandatos
vinculados.
Sugere, igualmente, a irrevogabilidade, e a irrevogabilidade popular, de
tais mandatos.
IV – De facto, a cessação antecipada do mandato do Presidente da República
só pode fundar-se em ausência não consentida pelo Parlamento (art. 129º, nº 1 e
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nº 3), condenação criminal atinente ao exercício de funções (art. 130º, nº 1, e nº 3),
ou renúncia (art. 131º).
E nunca enquanto resultado de uma intervenção, de qualquer tipo, por
parte do Soberano.
V – Analogamente, os Deputados apenas veem cessado antecipadamente
o seu mandato nos casos em que não tomem assento na Assembleia, excedam
o número de faltas regimental (art. 160º, nº 1, al. b)), se inscrevam em partido
diverso daquele pelo qual se apresentaram a sufrágio (art. 160º, nº 1, al. c)), sejam
feridos por uma incapacidade ou incompatibilidade legais (art. 160º, nº 1, al. a)),
sejam judicialmente condenados por um crime de responsabilidade no exercício
da sua função, ou por participação em organizações racistas ou que perfilhem a
ideologia fascista (art. 160º, nº 1, al. d)).
Mas, como na situação anterior, nunca enquanto consequência de uma ação
do Soberano.
VI – Quanto ao Primeiro-Ministro – refrisando-se que inexiste mandato –
pode ver antecipado o termo das suas funções – em rigor, o pleno exercício destas
(art. 186º, nº 5), com múltiplas causas, da rejeição do programa do Governo (art.
195º, nº 1, al. d)), à não aprovação de uma moção de confiança (art. 195º, nº 1, al.
e)), ou à aprovação de uma moção de censura (art. 195º, nº 1, al. f)), e, bem assim,
por decisão presidencial (art. 195º, nº 2), ou, inclusive, por auto-demissão (art.
195º, nº 1, al. b)).
E, nunca, em circunstância alguma, como efeito de uma decisão tomada
pelo Soberano.
11.2.2.2. Sistema eleitoral proporcional
O segundo entrave ao recall político resulta de um sistema eleitoral
proporcional puro.
Mais: de um sistema eleitoral proporcional dotado de expressa previsão
constitucional (art. 113º, nº 5).
E, sobretudo, com expressa menção como limite material de revisão
constitucional (art. 288º, al. h)).
11.3. Proposta relativa à introdução do recall político em Portugal
11.3.1. Mandato livre e sistema proporcional
I – O estabelecimento de um mandato livre não surge incompatível com a
sua revogação.
Assim, de um lado, o mandato seria suscetível de um livre exercício pelos
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Mas, de outro lado, existiria a faculdade popular de uma aferição relativa
à competência ou incompetência, e à probidade ou não probidade, com que o
mandato seria exercido.
II – Maiores problemas suscita o sistema eleitoral proporcional, embora não
se trate de uma impossibilidade, porque este traduz uma escolha política, nunca
uma inevitabilidade.
Razão pelo qual, aliás, defendemos, há muito, a substituição desse sistema
proporcional por um sistema integralmente maioritário, e por um sistema
maioritário a uma única volta.
11.3.2. Natureza jurídica
I – O recall político, na Constituição pátria, apresentar-se-ia, em qualquer
das suas virtuais manifestações, enquanto direito e, naturalmente, enquanto
direito fundamental.
Assim, como um direito subjetivo, público, individual, frente ao poder e face
aos restantes indivíduos, de origem natural, positivado, tipificado, determinado,
precetivo, vinculativo, incondicionado, justiciável e, por último, fundado na
dignidade da pessoa humana.
Entre os Direitos Fundamentais, afirmar-se-ia como um direito-direito e
direito-garantia, colegializado, potestativo, extintivo, complexo, de liberdade,
político e semi-direto.
II – Logo, integrar-se-ia, de pleno, nos direitos, liberdades e garantias (art. 24º
a 57º), sem utilização da – opaca e polémica – categoria dos direitos de natureza
análoga (art. 17º).
Mesmo se, por razões de sistemática, a integração na mesma se revelaria
exequível.
11.3.3. Princípios e regime geral
O recall político fruiria de todos os princípios dos direitos, liberdades e
garantias, concretamente, universalidade (art. 12º e 15º), igualdade (art. 13º),
proporcionalidade (art. 18º e 19º), confiança (art. 18º), responsabilidade (art. 22º)
e justicialidade (art. 20º e 268º).
E partilharia com eles o inerente regime, mormente, nos domínios da
aplicabilidade (art. 18º), vinculação (art. 18º), restrição (art. 18º), suspensão (art
18º), revisão constitucional (art. 288º), hetero-tutela (art. 20º), ou da própria auto-
tutela (art. 21º).
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Se bem que não o regime da reserva legislativa, aqui comum ao regime
das eleições nacionais e regionais (art. 164º), nem a forma, agora exigida, de lei
orgânica (art. 166º).
11.3.4. Regime específico
11.3.4.1. Âmbito
Em tese geral, o recall político inere ao próprio mandato, não surge dele
independente.
De onde, à eleição tem de corresponder, logicamente, um ato, simétrico, de
deseleição.
Nesse contexto, alargar-se-ia à integralidade dos órgãos eletivos, quer de
âmbito nacional, quer de âmbito regional.
11.3.4.2. Alcance
I – Num plano nacional, o recall seria dirigível contra todos os titulares de
órgãos políticos eletivos.
A saber, o Presidente da República e os Deputados à Assembleia da
República, ou, e em caso de futura eleição direta deste, o Primeiro-Ministro.
II – No que concerne ao Presidente da República, eleito através de um
círculo nacional, a previsão do instituto não suscitaria dificuldades.
Aliás, permitiria a adoção de um mandato único e mais longo, eliminando
os custos de uma eleição sempre recondutora do titular no cargo, e impedindo
a esquizofrenia política de dois mandatos do mesmo titular, um destinado à
preparação da reeleição, e só o último vocacionado para o efetivo exercício das
funções constitucionalmente previstas.
III – No que tange à Assembleia da República, o recall justificaria – embora,
em rigor, não a implicasse – a adoção de um sistema eleitoral maioritário,
exclusivamente uninominal e, virtualmente, de um só turno.
Alegar-se-á que essa vicissitude implicaria uma transição constitucional,
considerados não tanto os limites, expressos, de revisão (art. 288º) – em si
mesmos irrelevantes – mas a própria matriz identitária dos comandos atinentes
à proporcionalidade eleitoral.
Mas não é assim, porque tal sistema, ao invés do sistema de governo ou,
por maioria de razão, do modelo de Estado, não integra o corpus estruturante da
Constituição.
Como o prova, aliás, a sua não-regulação em elevado número de textos
fundamentais.
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Podendo ainda acrescentar-se, naturalmente, que o Estado permanece, e
deve permanecer, mas as Constituições passam, e não podem deixar de passar.
IV – Quanto ao Primeiro-Ministro, em caso de eleição direta, teria sentido a
criação de um regime jurídico similar ao do Presidente da República.
Quiçá, em consonância com um mandato longo e, da mesma forma,
irrenovável.
V – No plano regional, o recall teria enquanto destinatários os membros de
órgãos políticos eletivos.
Os Deputados às Assembleias Legislativas das duas Regiões Autónomas,
e, em caso de futura seleção por eleição direta, os respetivos Presidentes dos
Governos Regionais.
11.3.4.3. Tempo
I – Surgiria razoável uma proibição no decurso dos primeiros seis meses,
e afigurar-se-ia aceitável, também, uma inibição nos últimos seis meses do
mandato.
Na primeira situação, para permitir aos mandatários um início
funcionalmente adequado e para assegurar um juízo fundado dos mandantes.
Na segunda situação, porque não seria racional uma eleição para período
tão curto.
II – Igualmente, deveria ficar excluída, em caso de inêxito, a realização de
procedimentos revogatórios no decurso do mesmo mandato político.
De facto, o recall tem de permanecer excecional e, sobretudo, nunca uma
arma de guerrilha partidária ou de questionação de legítimos resultados eleitorais.
11.3.4.4. Causas
A resposta à incompetência e o combate à corrupção salientam-se, tanto
histórica, como atualmente, como as duas principais causas do recall político.
Mas nelas não se esgotam, pelo que outro motivo, quer de carácter pessoal,
quer político, quer mesmo de natureza judicial, seria passível de determinar o
respetivo uso.
Assim, a incapacidade mental ou física, a condenação ou a acusação, maxime
criminal, e a inobservância, por ação ou omissão, de quaisquer padrões de
natureza ética.
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11.3.4.5. Pressupostos
Pretender-se-ia uma revogação do mandato político iniciável popularmente
total recall.
De facto, só essa construção viabiliza o desempenho, simultâneo, das duas
principais tarefas para que está vocacionado, a resposta à incompetência e o
combate à corrupção.
11.3.4.6. Assinaturas
I – O número de assinaturas necessário não ultrapassaria os 10% do número
de eleitores participantes no sufrágio relativo à designação do próprio titular
revocável.
De um lado, em ordem a não inviabilizar, faticamente, o exercício do direito
examinando.
E, de outro lado, para evitar a empresarialização, desfigurando a sua
natureza individual.
II – Na metodologia da recolha de assinaturas deveria preferir, por ora, o
sistema de recolha dinâmica, na rua, ou porta-a-porta, em detrimento da recolha
estática, em locais públicos, porque esta última supõe a existência de uma cultura
cívica mais aperfeiçoada.
III – Quanto ao prazo para assinaturas, este não deveria ser muito curto,
para afastar a profissionalização, nem muito longo, para evitar o excesso de
instabilidade política.
11.3.4.7. Efeitos
O recall teria como efeito acessório a insusceptibilidade de apresentação de
nova candidatura ao cargo, durante um período temporal alargado.
Mais: considerando que lhe subjaz um juízo eminentemente pessoal,
semelhante inibição estender-se-ia aos restantes cargos políticos eletivos.
11.3.4.8. Articulação com a eleição
Finalmente, o termo antecipado do mandato e o início do subsequente
cumular-se-iam, evitando a realização de uma eleição designatória que se
sucederia à eleição revocatória.
Quer visando a redução de custos, quer em ordem a uma escolha popular
mais efetiva, entre a pessoa do titular do mandato revogável e as pessoas dos
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candidatos a substitutos.
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