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RAÇA, DIGNIDADE HUMANA E JUSTIÇA SOCIAL:
O PRINCÍPIO DA IGUALDADE NA ÓTICA DO INDIVÍDUO
FACE ÀS ASSIMETRIAS SOCIAIS NA CONSTITUIÇÃO
PORTUGUESA DE 1976
1
RACE, HUMAN DIGNITY AND SOCIAL JUSTICE:
THE PRINCIPLE OF EQUALITY FROM THE INDIVIDUAL’S POINT
OF VIEW IN THE FACE OF SOCIAL ASYMMETRIES IN
THE PORTUGUESE CONSTITUTION OF 1976
João Ferreira Dias
2
DOI: https://doi.org/10.34628/0eqj-ak65
Resumo: O presente artigo propõe-se analisar o princípio da igualdade, en-
quanto matéria jurídico-filosófica, na ótica do indivíduo face às assimetrias sociais,
mobilizando, para isso, as categorias de dignidade humana e justiça social, a par-
tir do caso concreto da categoria “raça”, ou seja, tomando em consideração as es-
pecificidades dos grupos racializados, que por seu histórico e em razão do modo
como as sociedades ocidentais reproduzem sistemas racializados, implicam uma
interpretação programática do princípio da igualdade no quadro da Constituição da
República Portuguesa de 1976, na redação atual.
Palavras-chave: Princípio da igualdade; Raça; Dignidade humana; Justiça so-
cial; Constituição Portuguesa.
Abstract: This essay discusses the principle of equality in the 1976´s Portuguese
1
O presente artigo é elaborado no quadro de uma investigação em curso, dedicada às gramáti-
cas identitárias existentes em Portugal e os seus efeitos no quadro dos direitos fundamentais, fi-
nanciada pelo Centro de Estudos Internacionais – ISCTE com fundos da Fundação para Ciência e
Tecnologia (UI/BD/151564/2021).
2
Investigador Integrado do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE e Investigador Asso-
ciado do Centro de História da Universidade de Lisboa.
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Constitution, in its current redaction, from the individual’s point of view in the face
of social asymmetries in the circumstance and needs of racialised people. For that, I
mobilised the categories of human dignity and social justice, knowing that western
societies structure themselves via historical systems of racialisation. In that sense,
it is justified inhere the need for a programmatic interpretation of the principle of
equality.
Keywords: The principle of equality; Race; Human dignity; Social justice;
Portuguese Constitution.
Sumário: Introdução. 1. O fator racial nas sociedades ocidentais, um
pano de fundo para o debate. 2. Dignidade humana, o farol dos Direitos
Fundamentais. 3. O princípio da igualdade na Constituição Portuguesa de
1976: um debate teórico. 4. A aplicabilidade de uma interpretação progra-
mática ao caso concreto na ótica da justiça social. Conclusão..
Introdução
Neste artigo é analisado o princípio da igualdade, na Constituição da
República Portuguesa de 1976, na presente redação, discutindo-o em face de
uma bifurcação doutrinária, entre uma interpretação mais formal e estrita, pre-
sa à letra da lei e voltada à dimensão negativa de não intervenção do Estado,
e uma interpretação mais programática e comunitária do direito, que pressu-
põe uma atitude ativa do Estado no sentido de correção de assimetrias sociais.
Operacionaliza-se a discussão a partir da categoria “raça”. Pretende-se mostrar
como as especificidades dos grupos racializados, que por seu histórico e em ra-
zão do modo como as sociedades ocidentais reproduzem sistemas racializados,
implicam uma interpretação programática daquele princípio, no sentido de ga-
rantir a dignidade humana, farol dos direitos fundamentais, bem como almejan-
do garantir uma maior justiça social.
Reconhece-se que a partir do Estado Moderno a relação jurídica entre cida-
dãos e Estado passou a estar marcada pela vigência de garantias dos primeiros
em face do segundo, através de direitos fundamentais que visam a salvaguarda
de uma vida digna, a partir de uma conceção jusnatural racional dos mesmos,
i.e., de uma crença no valor apriorístico de um conjunto de direitos inalienáveis
que nem o Estado detém poder para derrogar, entrando assim no que Bobbio
(1992) chamou de “era dos direitos”. Tratou-se de um processo gradual, com
episódios de aceleramento, como as revoluções liberais, a revolução francesa e
as vagas de democratização, tendo observado dificuldades e recuos, mormente
durante os regimes autoritários do séc. XX.
Pretende-se mostrar como as sociedades ocidentais se estruturam em torno
de uma hierarquia racial e consequentes processos de racialização dos sujeitos,
com prejuízos em matérias como sucesso escolar e inserção e oportunidades la-
borais, que justificam não necessariamente a existência de direitos grupais adqui-
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ridos e absolutos, mas antes transitórios materializados na existência de políticas
públicas e legislação tendencialmente transitória (v.g. quotas raciais) que permi-
tam a correção de assimetrias sociais, a partir da disposição iuris tantum de tratar
o diferente como diferente.
Na próxima seção do texto, é evidenciada, através da literatura especializa-
da, a racialização das sociedades ocidentais, oferecendo o pano de fundo para a
discussão trazida a este artigo. Em seguida, é realizada uma discussão sistemáti-
ca do princípio da igualdade no atual quadro constitucional português, em fun-
ção do espaço exíguo, por fim tece-se a interseção entre os dois aspetos, funda-
mentando a aplicabilidade de uma interpretação programática ao caso concreto
na ótica da justiça social.
1. O fator racial nas sociedades ocidentais, um pano de fundo para o de-
bate
A “raça” tornou-se, desde o século XIX, com os estudos biológicos da diver-
sidade humana e numa ótica de darwinismo social e determinismo racial, uma
categoria estruturante nas relações west and the rest. Neste quadro conceptual
científico ocidental, os africanos eram inerentemente incivilizados, inferiores, ne-
cessitando da intervenção ocidental no sentido de adquirirem a verdadeira civi-
lidade: a europeia cristã. Nessa esteira, os primórdios das disciplinas etnológica
e antropológica foram feitos no sentido de fundamentar o evolucionismo como
processo natural humano, donde os africanos estariam mais próximos dos símios
do que dos europeus, razão pela qual se manifestava a sua inferioridade moral,
biológica e mental, a que os estudos de craniometria deram aval, estabelecendo
uma relação direta entre proporções dos crânios africanos e propensão para o
crime.
3
Estas conceções mantiveram-se em vigor desde o século XVIII e durante
todo o século XIX e em grande parte adentraram o século XX, através de varia-
ções como estigma cultural (v.g. MATORY, 2018). No Brasil, o mito da demo-
cracia racial (v.g. GUIMARÃES, 2006, 2019, SALES JR., 2006) e o racismo cordial
(TURRA/VENTURI, 1995) serviram para camuflar um longo percurso histórico-
-legal de branqueamento social e cultural (FERREIRA DIAS, 2019). Em Portugal
a situação não é diversa. A autoestima nacional (VALA, 2021) e a “hiperidenti-
dade” (LOURENÇO, 1992), são marcadas de uma ausência de identidade mais
3
Dois trabalhos merecem destaque nesta matéria: a obra de Josiah Clark Nott e George Gli-
ddon, A Escala Unilinear das Raças Humanas e Seus Parentes Inferiores, de 1868, onde os autores elabo-
ram estudos falseados que associavam o crânio dos africanos aos dos chimpanzés, a m de funda-
mentarem que os crânios dos europeus teriam as proporções “normais” e adequadas ao raciocínio e
à civilidade; e a obra de Charles Letourneau, L’évolution religieuse dans les diverses races humaines, de
1898, que servia para fundamentar o monoteísmo judaico-cristão como m último da civilização, a
partir do politeísmo primitivo e selvagem.
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abrangente, construindo a “portugalidade” (v.g. ZÚQUETE, 2022) em torno de
uma memória coletiva positiva da colonialidade portuguesa e como unidade de
sentimentos e culturas em torno da lusofonia, ideia a que o Estado Novo recor-
reu para efeitos de legitimação da presença portuguesa nas colónias africanas
(RIBEIRO, 2009; CASTELO, 2012; CHAVES, 2020) permanecendo até hoje como
paradigma identitário (VALE DE ALMEIDA, 2000; MARTINS, 2004; COSTA
PINTO, 2009; DE SOUSA, 2021).
Importa, contudo, avançar com um quadro conceptual explanatório que
sustente e enquadre o debate que se pretende encetar. Conforme salienta Bonilla-
Silva (1997, p. 471), categorias como “indianos” e “negros” foram criadas nos
séc. XVI e XVII para efeitos de legitimação da conquista e exploração de tais
populações, produzindo uma dicotomia que se cristalizou no tempo, embora res-
significada de outras formas, entre um “nós” civilizado e um “outros” selvagens.
A partir de vasta literatura, Christian (2019, p. 171) argumenta que a categoria e
ideia de “raça” é produto de uma “modernidade racializada” dado operar como
distinção material e discursiva entre “europeicidade e não-europeicidade”, a
partir de indicadores como economia política capitalista transnacional, mode-
lo de Estado ou produção de conhecimento, operados num quadro de valores
humanos hierarquicamente racializado. Este quadro de referência implica que o
racismo se expresse como um sistema internacional que modela e liga geografias
tendo por elemento constante uma supremacia branca.
Não obstante a existência de longo-termo do racismo enquanto fenómeno
de relações desproporcionais de poder e desqualificação e inferiorização alheia
com base em marcadores biológicos, Bonilla-Silva recorda o carácter recente da
condição de categoria analítica detida pelo conceito de “racismo”, tendo sido
empregue pela primeira vez enquanto tal em 1959, por Benedict, onde a autora
define racismo como um dogma que estabelece a condenação a uma inferiorida-
de congénita de um grupo étnico em face de um grupo dominante. Mais tarde,
em 1990, Schaefer viria a definir racismo como uma doutrina de superioridade
racial de um determinado grupo.
Almeida (2019, p. 22-24) dista racismo de preconceito e de discriminação
racial, definindo o primeiro como “uma forma sistemática de discriminação que
tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes
ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos,
a depender do grupo racial ao qual pertençam”. Por sua vez, o preconceito racial
seria “o juízo baseado em estereótipos acerca de indivíduos que pertençam a um
determinado grupo racializado, e que pode ou não resultar em práticas discri-
minatórias”. Por fim, a discriminação racial entende-a como dizendo respeito a
“atribuição de tratamento diferenciado a membros de grupos racialmente iden-
tificados. Portanto, a discriminação tem como requisito fundamental o poder”,
podendo ser (i) discriminação direta, caracterizada pelo “repúdio ostensivo a in-
divíduos ou grupos, motivado pela condição racial, exemplo do que ocorre em
países que proíbem a entrada de negros, judeus, muçulmanos, pessoas de origem
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árabe ou persa, ou ainda lojas que se recusem a atender clientes de determinada
raça”, ou (ii) indireta, expressa num ignorar da situação específica de um grupo
minoritário, sobre o qual ou sobre os quais, são impostas regras de “neutralidade
racial” – colourblindness – sem que se leve em conta a existência de diferenças
sociais significativas – discriminação pelo direito ou discriminação por impacto
adverso. A discriminação indireta seria caracterizada pela ausência de intencio-
nalidade explícita de discriminação. Da discriminação, direta e indireta, resulta
uma estratificação social de modo intergeracional, afetando as oportunidades de
ascensão social, reconhecimento e sustento material.
Bonilla-Silva explicita as diferentes molduras teóricas em relação ao fenó-
meno designado por racismo: (i) perspetiva marxista que postula o racismo como
ideologia resultante da escravidão e de outras formas de opressão de classe, que
permite a exploração de people of colour
4
, (ii) enquanto fenómeno psicológico,
donde seria uma realidade que exige avaliação ao nível individual, pelo que as
sociedades não poderiam ser racistas, apenas os indivíduos, (iii) na condição de
fenómeno estático, ou seja, enquanto fenómeno intemporal de natureza não-ma-
terial, assente em ideias que de alguma forma prevalecem no tempo, (iv) perspe-
tiva idealista, a qual advoga que o racismo é uma atitude e pensamento irracio-
nal e incorreto, postulando uma divisão rígida nas sociedades entre aqueles que
apresentam a patologia das ideias racistas e aqueles com um pensamento livre de
racismo. Como o autor refere, este tipo de raciocínio apresenta dois problemas,
primeiro desconsidera os elementos racionais que constroem os sistemas racia-
lizados, segundo, desconsidera que o racismo coevo apresenta fundamentações
racionais.
Esta perspetiva idealista, a que se prefere dar o nome de perspetiva ética,
vigora em sociedades de passado colonial, como a portuguesa, permitindo a pre-
servação de um passé composé (TRIAUD, 1999) na memória coletiva, funcionando
como saldo positivo da colonialidade.
Almeida, referido, apresenta conceções de racismo complementares às de
Bonilla-Silva, partindo dos seguintes critérios: (i) relação entre racismo e subjetivi-
dade; (ii) relação entre racismo e Estado; (iii) relação entre racismo e economia. Na
sua condição de jurista, Almeida opera com uma distinção entre racismo institu-
cional e racismo estrutural que é útil ao debate sobre o racismo enquanto fenóme-
no social (diverso de ideologia). Ad summam, a conceção individualista detém uma
natureza de senso comum, ligada a uma ideia de patologia individual de racismo
como algo errado, já referida na esteira de Bonilla-Silva. Por sua vez, a conceção
institucional comporta a interpretação de que o racismo é o resultado “do funcio-
namento das instituições, que passam a atuar em uma dinâmica que confere, ainda
4
Utiliza-se o termo anglosaxónico people of colour reconhecendo que o mesmo tem uma sig-
nicação diferente do português “pessoas de cor”, o qual detém, a ideologia de cor, i.e., a perceção
de que o caucasianismo não é uma cor, no sentido racial. Diferentemente, people of colour é utilizado
como uma expressão “politicamente correta” que classica as minorias étnicas e raciais em face do
caucasianismo.
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que indiretamente, desvantagens e privilégios com base na raça” (p. 26). Esta pers-
petiva posiciona o racismo numa ótica de dominação, onde é o poder que organiza
as relações raciais. O racismo institucional seria caracterizado, no seu entendimen-
to e da doutrina dominante, pelo estabelecimento de um sistema de discriminação
baseada na raça que visa a manutenção da hegemonia do grupo racial no poder.
Desse modo verifica-se um predomínio e um domínio de homens brancos nas ins-
tituições públicas (legislativo, judiciário, universidades, entre outras) e privadas
(v.g. direção de empresas) que dificultam, direta ou indiretamente, a ascensão de
negros e/ou mulheres. Por fim, a conceção estrutural emerge porque sendo “possí-
vel falar de um racismo institucional, significa que a imposição de regras e padrões
racistas por parte da instituição é de alguma maneira vinculada à ordem social que
ela visa resguardar” (p. 32), dado que as instituições são reflexo e materialização
de uma estrutura social que tem o racismo como componente orgânica. Nas suas
palavras, “as instituições são racistas porque a sociedade é racista” (ibidem). Como
ele resume, “o racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do
modo “normal” com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas
e até familiares, não sendo uma patologia social e nem um desarranjo institucional.
O racismo é estrutural.” (p. 34).
Bonilla-Silva avança com uma proposta teórica que fez escola, manifesta na
ideia de sistemas sociais racializados, correspondendo a “sociedades em que os
níveis económico, político, social e ideológico são parcialmente estruturados pela
colocação de atores em categorias raciais ou raças” (p. 469), envolvendo formas
de hierarquização que determinam as relações sociais entre grupos raciais, esta-
belecendo com isso vantagens para a “raça” em posição superior, como melhores
remunerações (a que DuBois deu o nome de “salário psicológico), acesso a me-
lhores empregos, papéis relevantes nos sistemas políticos, maior estima social,
autorização para definir fronteiras e segregações. Consequentemente, estes siste-
mas sociais racializados afetam as oportunidades das people of colour.
5
Desse modo, diferentes recompensas sociais produzem uma tensão entre
forças, uma para transformar a ordem racial, a outra para a manter. Isto significa
que os interesses são uma orientação coletiva em vez de um projeto individual.
De facto, como Bonilla-Silva menciona (p. 470), a batalha contra a escravatura
não conduziu a sociedades sem “raça”, mas ao estabelecimento de sistemas ra-
ciais sociais plurais, afetando a sociedade de modo intersecional, ou seja, que a
racialização acumula com a classe e o género.
Assim, sendo a “raça” e as “raças” consequência de práticas de oposição a
diferentes níveis, trata-se de categorias sociais ao invés de construções biológicas,
donde a categoria biológica raça desaparece, mas não o racismo enquanto práti-
ca. Como Bonilla-Silva refere, “Os atores em posições raciais não ocupam essas
posições porque são de raça X ou Y, mas porque X ou Y foi socialmente definido
5
Inúmeros trabalhos dão conta desta situação em contextos e geograas, como por exemplo
Lima e Vala (2004), Lima et. al. (2006) e Vala (2021).
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como raça” (p. 472). Como ele mesmo refere, os irlandeses em Inglaterra e os ju-
deus na Europa foram observados como “raças”, o que significa que a “raça” não
se limita a questões de pele. Além disso, segundo o autor, as categorias raciais
são utilizadas para organizar as relações sociais nas sociedades. A “raça” tornou-
-se então um elemento independente do sistema social que afeta os atores, quer
estes queiram ou não.
Em suma, Bonilla-Silva argumenta que o racismo é, de facto, um processo
de racialização social que afeta todos os grupos e todos os níveis sociais, origi-
nando uma ideologia que fortalece um grupo dominante. Considerando a histó-
ria da categoria “raça” como teoria e ideologia, esse grupo é “branco” (sabendo
que o branco é uma construção mais do que uma referência baseada na cor da
pele), donde o racismo se expressa, segundo Christian (2019, p. 171) como um sis-
tema mundial que molda e liga diferentes geografias na supremacia global bran-
ca. Como consequência desta abordagem teórica, a globalização é vista como um
sistema que assenta em pressupostos racistas marcados por uma histórica racia-
lização global que afeta as formas nacionais de racismo e de racialização. Isto
significa assumir a existência de um “global colonial” que privilegia a ontologia
da dominação racial histórica e persistente (p. 181).
Contudo, podemos argumentar que este quadro coloca a “raça” e a raciali-
zação no papel central, enquanto é possível defender uma lógica de exploração
global, que apesar de herdeira de uma estrutura colonial que eventualmente se
reproduz, é mais indiferente à “raça” do que aos lucros. Não se ignora o papel da
“raça” no processo de um sistema global de exploração, uma vez que reproduz o
esquema da hierarquia e da desigualdade natural. Ainda assim, desloca-se o pa-
râmetro de análise de “raça” para oportunidades de lucro, em que acontecimen-
tos históricos colocaram o Sul como uma terra de oportunidades de exploração
justificadas através da racialização dos povos.
Por fim, concretizando um panorama rápido da questão racial, que se encon-
tra longe de esgotar um tema de vastíssima literatura e debate, chegamos à questão
da branquitude e supremacia branca. A moldura teórica global do racismo postula,
então, que todos os estados modernos são moldados por uma lógica, praxis, e in-
teresses “brancos” (CHRISTIAN, 2019, p. 176). Este sistema que envolve pessoas,
eventos e espaços, correlacionando representações mentais, é expresso num mode-
lo de europeização racial que produz um imaginário de daltonismo (colourblinde-
ness). Segundo a autora (em linha com os precedentes), após a II Guerra Mundial, a
Europa entrou num período de desejo de apagamento racial por si só, bem realiza-
do no “universalismo francês”, a que podemos juntar o lusotropicalismo.
Nesta perspetiva global apresentada por Michelle Christian, a branquitude
e a supremacia branca (um debate eventualmente pertinente é saber se podemos
utilizar esses conceitos separadamente) são a base de todos os sistemas sociais
raciais nacionais. A branquitude é a força estruturante que historicamente mol-
dou todos os níveis sociais e prevaleceu em novos sistemas, mesmo naqueles sem
corpos brancos (p. 181). Nesse sentido, a autora assume a pertinência de reivin-
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dicar a validade de um processo de racialização e de consolidação de sociedades
estratificadas racializadas em todo o mundo relacionadas com a supremacia dos
brancos.
Assim, é crucial reivindicar que a branquitude se refere a um tipo de iden-
tidade racial. Além disso, podemos arriscar dizer que a branquitude é a própria
identidade racial desde que a raça foi construída, tomando como referência os
atavismos culturais, religiosos, económicos e sociais “brancos”. As outras “raças”
gravitam em torno da “raça branca”, a origem e o fim da construção histórica e
social da “raça” e da racialidade.
6
Embora a branquitude se refira a um tipo de identidade racial, como
Cardoso (2008, p.610) menciona, existe um consenso de que a identidade racial
branca é diversa. Seguindo a literatura internacional, o autor brasileiro resume
a branquitude como privilégios simbólicos, subjetivos e objetivos. Estes privi-
légios materiais tangíveis colaboram com a construção social e reprodução do
preconceito racial, da discriminação racial e do racismo. É, igualmente, um lugar
estrutural a partir do qual o sujeito branco vê os outros e a si próprio, uma posi-
ção de poder, um lugar confortável a partir do qual se pode atribuir ao outro o
que não se atribui a si próprio. Por outras palavras, é um lugar de domínio que
permite classificar e desclassificar os outros em atributos de preconceito. Assim,
ser branco é tomado como a ausência de racialidade, é ser normal, o fenótipo e
cultura ideais (p. 611).
1.1. A tradução da racialização em práticas, e o caso português
Encetando-se uma aproximação sumária, releva considerar o sistemáti-
co trabalho de Vala (2021). Como refere o autor (p. 15), a norma antirracista é
um fenómeno social recente, em decorrência dos acontecimentos da II Guerra
Mundial, despertando a consciência para os efeitos da categoria “raça” na classi-
ficação de grupos humanos, a que os movimentos de libertação e independência
das colónias europeias deram relevante contributo. À Declaração Universal dos
Direitos Humanos, em 1948, viria a juntar-se a declaração da UNESCO declaran-
do a “raça” como um mito social, dando seguimento a um conjunto de estudos
que desacreditou a relação entre atributos biológicos e atributos culturais e psi-
cológicos inerentes a supostas “raças”. Em Portugal a consciência da incompa-
tibilidade do racismo com a democracia e os inerentes valores da liberdade e
da igualdade é ainda mais recente do que no resto da Europa (p. 17), em razão
do passado colonial português e do longo processo de doutrinação escolar du-
rante a ditadura, onde “ao mesmo tempo que se aprendia a ler e a escrever, se
aprendia a missão «ultramarina, cristã e redentora» de Portugal, a sua vocação
para «civilizar» outros povos, legitimada pela crença na superioridade moral dos
Portugueses” (p. 18-19). Apesar da descolonização em massa, Portugal perma-
6
Ver igualmente Almeida (2019, p. 48ss).
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neceria um Estado composto até 1974, com colónias em África, cujas relações
jurídicas se encontravam reguladas pelo Estatuto dos Indígenas, que vigou entre
1926 e 1961. Com efeito, somente em 1978, já em plena democracia, Portugal vei-
cula para si a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e a Convenção
Europeia dos Direitos do Homem (1953). Desse modo, as gerações até ao 25 de
abril foram socializadas num ambiente de amnésia do passado negativo da his-
tória portuguesa, situação que vigora até hoje. Não é por acaso que a vigência
de racismo na sociedade portuguesa permanece negada, embora nunca tenha
sido tão condenada como presentemente (p. 19-20). Esta questão é, sem dúvida,
nevrálgica e estrutural no quadro da memória coletiva nacional, reproduzindo
mitos coloniais para além do tempo do Estado Novo. Uma boa razão para tal –
que o autor não refere – poderá encontrar-se no facto de que as principais figuras
do Estado desde o 25 de abril de 1974 terem sido socializadas, em grande medi-
da, durante o regime autoritário. Talvez por essa transição democrática tardia a
norma antirracista não seja consensual – “é hoje uma norma polémica sujeita a
pressões sociopolíticas, num contexto global em que a própria democracia está
ameaçada” (p. 20). O autor vai mais longe, tipificando a relação social com a
norma antirracista em (a) rejeição, podendo ser velada ou aberta; (b) aceitação,
que é uma conformidade social que não implica qualquer tomada de consciência
e posição concreta, ou nas suas palavras, “identificação com os valores do uni-
versalismo e do igualitarismo em que a norma se apoia»; (c) internalização, «isto
é, o cumprimento da norma decorrente da congruência entre os valores que a
sustentam e os valores pessoais” (p. 21).
Ao longo da obra, Jorge Vala vai mostrando como o racismo é uma crença
viva e dinâmica, que acompanha ideias nacionalistas e antimigratórias, interli-
gando posições a favor da discriminação no acesso a emprego, no acesso à nacio-
nalidade, separação nas escolas, zonas habitacionais, etc. (p. 70).
Ora, o racismo enquanto crença traduz-se em atitudes que vão além da vio-
lência, e que ajudam a explicar os fenómenos de insucesso escolar e laboral das
populações marginalizadas. Isto porque, o racismo, ao contrário de uma crença
dominante, não se resume em atitudes declaradas «antinegro», mas habita pos-
tulados sociais silenciosos, até porque a esmagadora maioria dos europeus con-
sidera errado discriminar a partir de referenciais étnicos (p. 87). Por outro lado, é
comum considerar que determinados grupos humanos possuem mais atributos
tidos por humanos do que outros, como por exemplo, a crença de que os negros
possuem menos afeto pelos filhos. Essas ideias disseminadas correspondem a
conceções racistas (culturais, biológicas, etc.) que coabitam com a crença na de-
mocracia plena e no antirracismo. Ora, ao afirmar a norma antirracista mantendo
crenças racializadas, verifica-se um deslocamento do racismo biológico típico dos
séculos XVIII e XIX para um racismo cultural, conforme previra Lévi-Strauss em
1950 (p. 95). O racismo cultural pressupõe que determinados grupos humanos
são inaptos a imigrarem para a Europa por possuírem graus culturais inferiores,
cuja fundamentação se encontra na diferença (p. 97). Nesse sentido, determina-
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das culturas seriam mais civilizadas do que outras (p. 101-102), i.e., por outras
palavras, o Ocidente branco, europeu e norte-americano, seria manifestamente
superior e mais civilizado, uma vez que o paradigma de análise é eurocêntrico.
Ora, o racismo encontra-se traduzido em atitudes institucionalizadas, em
particular na escola e nas forças policiais
7
. A discriminação pela realidade étnica
dos sujeitos está patente na presunção de incapacidade (logo futuro insucesso)
escolar e na aptidão para a violência. Essa crença generalizada traduz-se na pre-
sunção de culpa sem culpa formada. O autor, contudo, coloca a hipótese de a
violência exacerbada por parte da polícia em Portugal face a pessoas racializadas,
em especial negras, ser resultado de condições pessoais e sociais associadas à
criminalidade ou a fatores de ordem penal (p. 112). No caso escolar, Jorge Vala
revela estudos realizados que mostram que decorrem expectativas positivas e
negativas face aos alunos em função da sua condição racial prima facie, pelo que
que diante dos indivíduos caucasianos se verifica um maior feedback positivo dos
docentes. No caso dos alunos sobre os quais recai expectativa negativa, os racia-
lizados e imigrantes são os principais alvos, situação que gera uma maior pro-
babilidade de insucesso escolar, tanto pelo menor investimento dos professores
quanto pela ansiedade de inferiorização gerada pela ameaça do estereótipo (p.
115-16).
No quadro da empatia é alarmante o estudo que mostra que a condição
étnica de uma criança é determinante na produção de empatia em situação de
vítima (p. 123). Tal facto serve de mote para compreender a legitimação do racis-
mo como produto social (p. 124), bem como a crença individualista de que cada
um tem o que merece numa sociedade meritocrática
8
, pelo que as minorias se
encontram em condição fragilizada não por razões de ordem sociológica e insti-
tucional, mas antes por incapacidade própria de galgar os degraus do sucesso.
Assim, com enfase ao caso português, como refere o autor, a reflexão sobre
o racismo é um assunto delicado e incómodo nas sociedades europeias coloniais,
em especial em Portugal, uma vez que “a identidade e o orgulho nacional es-
tão fortemente baseados na história” (p. 126), cultivando intensamente o mito
de bom colonizador desde muito cedo, ganhando dimensão exacerbada com o
pós-II Guerra Mundial, quando o Estado Novo precisou de lidar com as pres-
sões anticoloniais internacionais. Para isso, foi aproveitado o lusotropicalismo de
Gilberto Freyre, produzindo a ideologia da tendência genética portuguesa para
a miscigenação e do catolicismo luso para o ecumenismo. Esta ideologia foi es-
sencial para a autoestima coletiva nacional (p.127)
9
. Assim, um país lusotropical
7
Sugere ver-se o inventário feito por Eddo-Lodge (2021) em Inglaterra, onde se revela a des-
proporção das intervenções policiais e das penas face a populações racializadas, mostrando ainda
como as forças policiais são compostas, ao longo de décadas, por pessoas que detêm crenças racistas
apriorísticas, situação que explica a desproporcionalidade vericada.
8
Sobre este aspeto ver também Almeida (2019, p. 52-54).
9
Para Zúquete (2022) esta questão identitária existencial da “portugalidade” detém vocação
para fazer emergir partidos identitários nacionalistas mais radicais nos próximos anos.
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como Portugal jamais poderia ser dado a produzir racismo, facto que os estudos
arrolados por Vala derrogam, bem como o mais recente European Social Survey
(2018/19), o qual mostra que 62% dos portugueses manifestam racismo.
2. Dignidade humana, o farol dos Direitos Fundamentais
Abordar o princípio da igualdade numa ótica do indivíduo em face de uma
ideia de justiça social implica reconhecer que tratamos de um quadro maior de-
signado por direitos fundamentais, cujo fundamento axial é a dignidade da pes-
soa humana. A dignidade da pessoa humana, ou simplesmente a dignidade hu-
mana, constitui, no entender de Gomes Canotilho e Vital Moreira (2007, p.199),
a precondição da legitimação da República. Com efeito, tal nos é anunciado pelo
art.º 1.º da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP), onde se lê
que “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e
na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e
solidária.” (itálico próprio). É um facto que a noção de dignidade humana detém
uma forte dimensão do homem universal gerado pelo localismo globalizado da
cultura ocidental (c.f. ALMEIDA, 2019, p. 18ss), que implica, por consequência,
um olhar de relativismo cultural (v.g. BARBOSA RODRIGUES, 2018).
10
Não obs-
tante tal condição, verifica-se que a globalização dos valores ocidentais de matriz
jusnaturalista racional permite que a ideia de dignidade humana detenha um las-
tro fundamental, estando presente em inúmeros ordenamentos jurídicos internos
e externos, podendo salientar-se a Declaração Universal dos Direitos Humanos
(art.º 1.º, 22.º, 23.º/3), o n.º 2 do artigo 5.º da Convenção Americana dos Direitos
Humanos, o artigo 5.º da Carta Africana dos Direitos dos Homens e dos Povos,
e o artigo 2.º do Tratado da União Europeia (TUE).
Apesar de se tratar de um princípio estruturante, até mesmo axial ou su-
praprincípio dos direitos fundamentais, a dignidade humana não é abstrata, ela
impõe ao Estado não somente o respeito rigoroso, mas igualmente um dever de
proteção, por mais paradoxal que possa parecer, já que “o respeito pressupõe
uma limitação à atuação das entidades públicas estaduais, a proteção exige já
uma postura ativa por parte do Estado” (BOTELHO, 2017, p. 266), que Novais
designar por “dever-ser” (2004, p. 51). Ainda Novais (p. 51-2) entende que o
princípio da dignidade humana acarreta uma dimensão relacional entre o indi-
víduo e o Estado, dado que sendo elevado, no plano constitucional, a princípio
supremo, obriga o Estado a conformar a sua ordem jurídica, veiculando todos os
poderes do mesmo. O mesmo autor vai mais longe. Para ele, a assunção da dig-
nidade humana como princípio supremo impõe que o Estado não possa ser visto
10
Aquando dos movimentos coloniais em África e nas Américas, era prática comum o sacrifício
(muitas vezes voluntário) humano, quer para acompanhar o rei no além-túmulo, quer como ofertório
aos deuses, facto que caso tivesse prevalecido além do colonialismo deteria uma dimensão coni-
tuante com o basilar direito à vida dos ordenamentos jurídicos ocidentais.
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como fim em si mesmo, sendo, antes, a dignidade o fim por si próprio, razão de
o Estado se obrigar a tal garantir.
Novamente Botelho, entende que o princípio da dignidade da pessoa hu-
mana apresenta uma significado jurídico-político, quer na dimensão individual
de atributo da pessoa humana, quer na dimensão social por via da “ligação incin-
dível com a liberdade e a igualdade” (2017, p. 266).
Nesta matéria, Jorge Miranda e António Cortês (2017) defendem que o
princípio da dignidade da pessoa humana representa o “prius incondicional de
todo o Direito” (p. 61), pelo que na sua dimensão político-jurídica impõe um
dever de solidariedade/fraternidade, esta última na terminologia da Declaração
Universal dos Direitos Humanos, no seu art.º 1.º (p. 62). Os autores, seguem a
doutrina de que o princípio da dignidade da pessoa humana não é independente
do humanismo cristão, através da semelhança entre Deus e o Homem, assunção
que tomada de modo fático ou pelo menos essencialista, implica tanto um etno-
centrismo que levou a ideias racistas, quanto desconsidera o contributo da laici-
dade social na garantia de direitos fundamentais inerentes à dignidade humana
em concreto na matéria da igualdade, como por exemplo o direito ao casamento
entre pessoas do mesmo sexo, cujo impedimento era resultante, precisamente, de
um caldo cultural de matriz religioso.
Ademais, o sujeito consagrado como portador e destinatário da garantia da
dignidade humana é o pessoal e não o coletivo (idem, p. 64), sendo que o prin-
cípio da dignidade humana se afirma como axial de todo o sistema de direitos
fundamentais (ibidem).
O espaço exíguo e o desdobramento da discussão, não permitem o trata-
mento exaustivo de cada princípio e matéria nela contido. Assim, ad summam, em
linha com Botelho (2017), considera-se a dignidade da pessoa humana como o
princípio a partir do qual são articulados os direitos fundamentais, quer os inte-
grados no constitucionalismo português ao catálogo de direitos, liberdades e ga-
rantias, quer os relativos aos direitos económicos, sociais e culturais, afirmando-
-se, como o prius incondicional de todo o Direito e princípio axial dos referidos
direitos fundamentais, na esteira de Miranda e Cortês (2017).
3. O princípio da igualdade na Constituição Portuguesa de 1976: um de-
bate teórico
O debate proposto neste ponto é instigante e padece do vício e da virtude da
impossibilidade de se esgotar no espaço exíguo. O quadro conceptual ocidental,
embora divergente na doutrina, detém uma materialidade consistente, a qual for-
ma o seu ethos comunitário-civilizacional. Nesse sentido, os princípios estruturan-
tes do constitucionalismo europeu, mutatis mutandi, veiculam uma evidente inter-
secionalidade. É por tal razão que o princípio da igualdade se encontra em estreita
relação com o princípio da liberdade, enquanto valores intrinsecamente ociden-
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tais à luz do fundamento jusnaturalista atribuído pelas revoluções liberais, e que
alicerçam as sociedades ocidentais coevas. Apresentam, todavia, origem material
distinta, uma vez que a igualdade se trata de uma construção nos planos sociais,
políticos, económicos e jurídicos, enquanto a liberdade se quer fundante da natu-
reza humana, ela existe per se et ab initio. É por isso que o princípio da igualdade
não deve colidir, comprimir ou eliminar o princípio da liberdade sob pena de visar
uma uniformização que derroga a natureza livre dos sujeitos. Mas, de igual modo,
não deve descorar as condições específicas económicas, culturais e sociais dos indi-
víduos, de modo a que negando as naturais diferenças entre sujeitos o princípio da
igualdade não se torne num fator de promoção de desigualdades (GARCIA, 2005,
p. 11-12). Releva, então, que a igualdade se afirma como uma realidade construída,
que visa atingir um patamar de justiça social. Como refere Garcia (p. 15), “cedo
se tornou claro que o princípio da igualdade não traduz só o tratamento igual de
situações iguais. Envolve ainda o tratamento diferenciado de situações objetiva-
mente consideradas diferentes, na medida exata da diferença”.
Entramos, deste modo, na materialização do princípio da igualdade em
sede constitucional, através do art.º 13.º da CRP. Para Gomes Canotilho e Vital
Moreira (2007, p.336ss.), o princípio da igualdade opera como um dos mais es-
truturantes do sistema constitucional global, dividindo-se em três dimensões: (i)
liberal, postulando a igualdade de todas as pessoas perante a lei, independen-
te das suas condições de nascimento e status, (ii) democrática, a qual implica a
explícita proibição de descriminação, seja positiva seja negativa, no acesso ao
exercício do poder político e a cargos públicos, (iii) social, a qual implica “a eli-
minação das desigualdades fácticas (económicas, sociais e culturais), de forma a
atingir-se a «igualdade entre os portugueses» (art.º 9.º/d)”. Trata-se, com efeito,
de uma ausência de neutralidade, visando, todavia, garantir “o valor humano
mais precioso, o valor que qualquer regulação social deve começar por, antes do
mais, salvaguardar: a dignidade humana” (GARCIA, 2005, p. 18). Jorge Miranda
e Rui Medeiros (2017) glosam o artigo constitucional de um modo detalhado.
Da ótica do indivíduo, conteúdo que aqui importa, defendem que à igualdade
jurídico-formal do preceito se deve integrar a noção de dignidade social inerente
à dignidade da pessoa humana, em relação às “desigualdades de facto (físicas,
económicas, geográficas, etc.)” donde “importa que o poder público e a socieda-
de civil criem ou recriem as oportunidades e as condições que a todos permitam
usufruir dos mesmos direitos e cumprir os mesmos deveres” (p. 164)
11
. Assim,
para os autores, o princípio não se esgota na “máxima de tratar igualmente o
que é igual e tratar desigualmente o que é desigual”, donde seria uma fórmula
vazia e assim liberal de igualdade puramente formal (p. 167). Do mesmo modo,
11
No mesmo sentido, Garcia (2005, p. 22) defende que a dignidade é garantida, pois, através
da prossecução da eliminação, então, das desigualdades fáticas, “especial tarefa imposta ao Estado”,
por via de “políticas económica, scal ou outras”, que visam “compensar desigualdades de riqueza
e rendimento que, por sua vez, se reectem em desigualdades efectivas de exercício dos direitos
fundamentais”.
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consideram o catálogo de desigualdades inadmissíveis presentes ao n.º 2 do pre-
ceito meramente exemplificativo, maleável em face da consciência jurídica da
sociedade (p. 172).
Diversamente, Barbosa Rodrigues (2021, p. 304ss), avança com o que enten-
de ser um sentido rigoroso do termo, referindo-se à igualdade normativa, que
designa por igualdade liberal, e um sentido “inrigoroso” do termo, que seria o
da igualdade material, efetiva. Assim, em sentido diverso de Gomes Canotilho
(2007 p. 430), Vieira de Andrade (2017, p. 131) e Miranda e Medeiros (2017), que
entendem o termo como implicando uma dimensão de justiça social e de prote-
ção tendo em vista a dignidade da pessoa humana, Barbosa Rodrigues enten-
de tal interpretação como igualitarismo que depende da existência de direitos
económicos, sociais e culturais, e assim de Estado Social (p. 306), opondo-se ao
modelo vigente que condena veemente (2021b). Mais adianta que o princípio da
igualdade tem por destinatários os poderes públicos e nunca os indivíduos, os
quais seriam regidos pelo valor da liberdade. Sustenta, portanto, que a dimensão
negativa do princípio da igualdade (art.º 13.º/2) visa impedir a arbitrariedade
na aplicação da lei, considerando que o catálogo de proibições expressas no ar-
ticulado deve ser lido de modo taxativo e não como referencial. Não é por acaso
que o autor vai em sentido contrário ao defendido por Vieira de Andrade – que
advoga que os Direitos Fundamentais demandam pela defesa dos direitos das
minorias (étnicas, religiosas, et. al.) e dos direitos às diferenças (incluindo a orien-
tação sexual) –, considerando que o princípio da igualdade não inclui quaisquer
minorias, por considerar que não existem Direitos Fundamentais grupais. O au-
tor chega a considerar os “direitos ao aborto, à eutanásia, à manipulação gené-
tica, à maternidade de substituição, ou, até mesmo, ao casamento homossexual
e à adoção homossexual” como “pseudo-direitos” contrários à proeminência do
jusnaturalismo (2020, p. 189).
Manifesta-se, pois, a existência de uma bifurcação doutrinária. De um lado,
uma dimensão mais programática que detém um sentido de correção de assime-
trias sociais, de desigualdades fáticas, através da intervenção do Estado, e que é
maioritária e tendencialmente consensual na doutrina (BACELAR GOUVEIA,
comunicação direta), e outro uma interpretação mais formal e estrita, presa à
letra da lei e voltada à dimensão negativa de não intervenção do Estado.
De seguida será considerada a questão de uma ótica da justiça social, consi-
derando o caso concreto do racismo.
4. A aplicabilidade de uma interpretação programática ao caso concreto na
ótica da justiça social
Vem-se salientando o pilar central, o nódulo, o farol, o princípio axial dos
direitos fundamentais: a dignidade humana. É ela que se entende ser a garantia
mais essencial do Direito, dos ordenamentos jurídicos pátrios e internacionais.
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Releva, todavia, uma diferença interpretativa em relação ao alcance que esta de-
tém, entre uma visão mais formalista e dita liberal, adstrita à dignidade humana
como garantia face ao Estado de não discriminação (negativa) nem ingerência,
salvaguardando o primado da liberdade, e uma visão mais programática, que
visa eliminar as desigualdades fáticas que afetam de diferentes modos os sujei-
tos. Garcia (2005, p. 12), argumenta, nesse tom, que “as condições singulares dos
indivíduos, independentemente da razão que a todos une, exigem tratamentos
diferenciados, sob pena de se criarem ou potenciarem diferenças sociais não me-
nos injustas do que as de épocas passadas”.
Ora, estando, portanto, ligado ao primado/princípio da justiça social, o prin-
cípio da igualdade, máxime pelo articulado do n.º 2 do artigo 13.º da CRP, detém
a matéria da discriminação negativa, pela letra da lei, i.e., a garantia de que o
catálogo ali contido não seja violado e, eventualmente, numa interpretação mais
analógica, direitos de natureza similar, entendendo-se, cada vez mais, que detém,
igualmente, a discriminação positiva, haja visto o fim de eliminação de desigual-
dades fáticas. Como referido por Garcia (2005, p. 22), as descriminações positi-
vas que do princípio da igualdade resultam são imposições ao Estado, através
de políticas públicas. A autora salienta a delicadeza das descriminações positivas
que visam compensar desigualdades de oportunidade
12
, implicando uma solida-
riedade intrageracional. Garcia vai mais longe, inscrevendo, bem, a questão da
necessidade de correção de assimetrias sociais, de desigualdades fáticas que se
visam compensar, num processo histórico de longue durée, dando como exemplo
a escravatura e a desigualdade entre homens e mulheres, situações que deixaram
sequelas nas estruturas sociais. Mais avança que o cerne da questão, o nódulo
onde se torna delicado o problema, reside no facto de “a geração actual, reconhe-
cendo a igualdade de todos os homens, ter de reconhecer também consensual-
mente que se atribuam benefícios, posições de favor, privilégios, a grupos sociais
que gerações passadas discriminaram de forma tão negativa, e por tanto tempo,
que ainda hoje sofrem as marcas dessa discriminação” (p. 23). Nessa linha, Gomes
Canotilho e Vital Moreira (2007, p. 200), afirmam que na condição de standard de
proteção universal que obriga a adoção de normas e convenções que visam garan-
tir um direito internacional adequado à proteção da dignidade da pessoa huma-
na, tanto na sua condição individual quanto coletiva (humanidade, povos, etnias).
Mas Garcia vai mais longe nesta reflexão, ao associar a questão precisamente aos
aspetos raciais. Coloca, ainda, questões pertinentes, salientando que por opções
políticas de gerações passadas, procurando equilibrar as condições de partida de
gerações futuras, são as gerações presentes afetadas por políticas de discrimina-
ção positiva, questionando, igualmente, qual o alcance destas, de modo que não
violem o princípio da igualdade que as torna necessárias (p. 25).
Se é relevante notar que Garcia menciona especificamente as questões das
populações racializadas, salienta-se, de igual modo, que Miranda e Medeiros, ao
12
No mesmo sentido Miranda & Medeiros (2017, p. 173).
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apresentarem o elenco de discriminações positivas necessárias, não incluem este
aspeto (2017, p. 179). Por seu turno, Melo Alexandrino (2018, p. 84) integra na
dimensão positiva da discriminação as políticas de quotas.
Vemos que apesar de um enfoque doutrinário na importância das discrimina-
ções positivas como eliminação de desigualdades fáticas, releva uma baixa referên-
cia e densificação em matéria racial. Não é, pois, de estranhar a posição ultraliberal
de Barbosa Rodrigues (2021, p. 311-12), que considera que a discriminação positi-
va tem vocação para a desigualdade, concretizando que o princípio da igualdade
“não inclui quaisquer minorias, pela razão, estrutural, de que não existem Direitos
Fundamentais grupais, mas, tão-só, Direitos Fundamentais individuais”. No en-
tanto, como o próprio autor honestamente menciona (p. 312), Vieira de Andrade
(1981, p. 67) afirma que no quadro dos Direitos Fundamentais impera a defesa dos
direitos das minorias e dos direitos às diferenças.
Como referido, Portugal detém uma memória coletiva imaginada em tor-
no de um saldo positivo e benemérito do colonialismo, sem considerar os efei-
tos de destruição simbólica, cultural, humana e material de milhões de africa-
nos escravizados. Se o lusotropicalismo operou como ideário do Estado Novo,
permitindo uma legitimação das províncias ultramarinas em mãos portugue-
sas, em razão de um pretenso sentimento coletivo de portugalidade, o advento
da democracia não trouxe mudanças significativas nesta matéria. Em razão da
tipologia de mensagem, os media tornaram-se veículos de propagação de es-
tereótipos acerca das populações imigrantes em Portugal, favorecendo precon-
ceitos e racismos (ROSÁRIO et. al., 2011, p. 63ss.). Apesar da variada produção
legislativa que visa a eliminação da desigualdade fática de natureza xenófoba
e racista, permanece um caldo sociológico que favorece a imaginação de um
país sem racismo, através da combinação de duas posturas ideológicas já re-
feridas – o racismo cordial e o colourblindness. Esta combinação evidenciou-se
aquando do debate e aprovação na Assembleia da República da vindoura lei
134/99, então na forma de propostas de lei, relativas à proibição de discrimi-
nações no exercício de direitos com base na raça, cor, nacionalidade ou origem
étnica. Desse momento relevam as declarações de António Filipe, deputado do
Partido Comunista Português: “Apresentamos este Projecto de Lei sem drama-
tismos. Portugal não é um país racista. Não temos, felizmente, no nosso país,
problemas de cariz racista com a dimensão e a gravidade dos problemas que
se manifestam nos Estados Unidos, na Alemanha, ou mesmo em França”
13
. Em
2017, aquando da revisão do diploma, o Ministro Adjunto Eduardo Cabrita
declarou um Portugal tolerante, internacionalmente destacado pelo acolhimen-
to de imigrantes e onde os conflitos são pontuais e sobretudo relacionados a
comunidades específicas
14
. Ora, a autoimagem de acolhimento exemplar e de
13
Disponível em <https://pcp.pt/actpol/temas/dhumanos/a9903251.html>.
14
Disponível em <https://debates.parlamento.pt/catalogo/r3/dar/01/13/02/070/2017-03-
30/3?pgs=32-37&org=PLC&plcdf=true> .
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um país livre de racismo é contrariada pelos relatórios internacionais que evi-
denciam uma particular violência sobre as comunidades africanas e afrodes-
cendentes em Portugal por parte das forças policiais
15
, bem como pelos dados
do European Social Survey (2018-19), que mostram um país com fortes crenças
racistas.
Assim, não obstante as crenças mais ou menos lusotropicalistas ou liberais
de colourblindeness, de um Portugal livre de racismo não-pontual, que inscrevem
os eventos na psicologia de sujeitos concretos e não no quadro do coletivo nacio-
nal, a verdade é que a literatura especializada, aqui referida de modo não exaus-
tivo, evidencia a existência de processos de racialização dos sujeitos que impos-
sibilita um igual acesso a oportunidades e desnivela o sucesso social e laboral
desses sujeitos. Os estudos realizados por Vala, aqui referidos, e outros por ele
mencionados de modo sistemático (VALA, 2021) explicitam uma circunstância
que derroga a suficiência do princípio da igualdade na dimensão meramente for-
mal. Ora, no sentido de reverter uma diferenciação no acesso à saúde, educação,
emprego, enfim, reverter as desigualdades fáticas que estão em clara interseção
com a condição racial dos sujeitos, impõe-se a intervenção do Estado através de
políticas públicas que promovem a discriminação positiva, como sejam as quotas
raciais.
Em termos concretos, reconhecer que existe racismo estrutural na sociedade
portuguesa, ainda que detendo uma dimensão de invisibilidade
16
ou cordialida-
de, que impõe limitações económicas, laborais, educacionais, entre outras, aos
sujeitos racializados, factos que afetam a sua dignidade e assim questionam a
garantia axial dos direitos fundamentais, implica admitir a necessidade de polí-
ticas públicas que eliminem tais desigualdades fáticas. Tais condições materiais
induzem uma interpretação necessariamente programática do princípio da igual-
dade, na especialidade de discriminação positiva, evidenciando, ainda, que exis-
tem direitos grupais, pela justa medida em que existem condições efetivas de
discriminação negativa histórica que impõe a discriminação positiva, mormente
através de políticas públicas como quotas no ensino, nas empresas e outras políti-
cas de acompanhamento continuado a sujeitos racializados que visem a inserção
laboral ativa.
Ou seja, verifica-se a disposição iuris tantum de tratar o diferente como dife-
rente, garantindo, pois, uma verdadeira justiça social, através de uma aceitação
de solidariedade intergeracional com desvantagens para a geração presente, com
todas as divergências doutrinárias que tal possa, e bem, suscitar.
15
relatório do Comité Anti-Tortura (CPT) do Conselho da Europa e «Relatório Ford» (Comis-
são de Inquérito sobre o Racismo e a Xenofobia, do Parlamento Europeu).
16
O conceito de invisibilidade diz respeito à condição de marginalidade económica, social e
muitas vezes geográca de minorias étnico-raciais, a qual conduz os sujeitos estigmatizados a uma
situação de invisíveis aos olhos do grupo dominante (v.g., Tomás (2012) e Faria (2017)).
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72 Lusíada. Direito • 27/28 (1.º e 2.º semestre de 2022)
Conclusão
Os Direitos Fundamentais integram uma ótica de unidade de sentido do
Direito Constitucional que assenta a sua fundamentalidade na dignidade da pes-
soa humana, princípio axial da ordem jurídica superior nacional e das conven-
ções internacionais de Direitos Humanos. Essa unidade de sentido permite que
os princípios estruturantes do constitucionalismo se revelem intersecionais, i.e.,
dependentes uns dos outros.
Neste artigo, partindo de uma abordagem concreta do racismo na socie-
dade portuguesa, pretendeu-se não apenas oferecer um quadro teórico para o
problema, como tratá-lo de harmonia com o princípio da igualdade, explicitando
a relevância de uma interpretação programática do articulado do n.º 2 do art.º 13
do texto constitucional português. Implicou-se, portanto, a partir da constatação
de assimetrias sociais estruturantes no caso de sujeitos racializados, a necessida-
de de uma leitura que inclua uma dimensão de discriminação positiva no sentido
de eliminar tais desigualdades fáticas, através da ação do Estado e por meio de
políticas públicas. Se a dignidade humana é o “dever-ser” do Estado, ela só se
realiza por ações concretas, o que implica rejeitar uma visão liberal do princípio
da igualdade meramente formal e negativa, que veicula a não-intervenção do
Estado e o laissez-faire. A contrario, a verdadeira igualdade só se realiza no plano
da desigualdade positiva que elimine a desigualdade de partida, ainda que tal
implique desvantagens para a geração presente, visando garantir a igualdade
possível (e limitada de modo a que não se torne igualitarista) vindoura. Vale
reconhecer a dimensão problemática que este tipo de opções acarreta, como seja
a de que a justiça social para os historicamente marginalizados é feita à custa de
sujeitos presentes que não são diretamente responsáveis pela situação concreta
dos sujeitos racializados. Naturalmente que neste quadro impõe-se o recurso ao
princípio da proporcionalidade, de modo a garantir que a justiça social dos injus-
tiçados não elimine a garantia de justiça social mínima daqueles que são, à falta
de outro termo, inrigorosamente, “privilegiados”.
Em suma, verifica-se que o princípio da igualdade, visando uma real garan-
tia de dignidade humana e de justiça social, implica ser tratado como detendo
uma dimensão programática de tratar o diferente como diferente, de modo fáti-
co, o que em rigor implica a existência, ainda que transitória, de direitos funda-
mentais grupais, numa ótica de discriminação positiva.
Bibliografia
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