
Raça, dignidade humana e justiça social, p. *** - ***
Lusíada. Direito • 27/28 (1.º e 2.º semestre de 2022) 69
Releva, todavia, uma diferença interpretativa em relação ao alcance que esta de-
tém, entre uma visão mais formalista e dita liberal, adstrita à dignidade humana
como garantia face ao Estado de não discriminação (negativa) nem ingerência,
salvaguardando o primado da liberdade, e uma visão mais programática, que
visa eliminar as desigualdades fáticas que afetam de diferentes modos os sujei-
tos. Garcia (2005, p. 12), argumenta, nesse tom, que “as condições singulares dos
indivíduos, independentemente da razão que a todos une, exigem tratamentos
diferenciados, sob pena de se criarem ou potenciarem diferenças sociais não me-
nos injustas do que as de épocas passadas”.
Ora, estando, portanto, ligado ao primado/princípio da justiça social, o prin-
cípio da igualdade, máxime pelo articulado do n.º 2 do artigo 13.º da CRP, detém
a matéria da discriminação negativa, pela letra da lei, i.e., a garantia de que o
catálogo ali contido não seja violado e, eventualmente, numa interpretação mais
analógica, direitos de natureza similar, entendendo-se, cada vez mais, que detém,
igualmente, a discriminação positiva, haja visto o fim de eliminação de desigual-
dades fáticas. Como referido por Garcia (2005, p. 22), as descriminações positi-
vas que do princípio da igualdade resultam são imposições ao Estado, através
de políticas públicas. A autora salienta a delicadeza das descriminações positivas
que visam compensar desigualdades de oportunidade
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, implicando uma solida-
riedade intrageracional. Garcia vai mais longe, inscrevendo, bem, a questão da
necessidade de correção de assimetrias sociais, de desigualdades fáticas que se
visam compensar, num processo histórico de longue durée, dando como exemplo
a escravatura e a desigualdade entre homens e mulheres, situações que deixaram
sequelas nas estruturas sociais. Mais avança que o cerne da questão, o nódulo
onde se torna delicado o problema, reside no facto de “a geração actual, reconhe-
cendo a igualdade de todos os homens, ter de reconhecer também consensual-
mente que se atribuam benefícios, posições de favor, privilégios, a grupos sociais
que gerações passadas discriminaram de forma tão negativa, e por tanto tempo,
que ainda hoje sofrem as marcas dessa discriminação” (p. 23). Nessa linha, Gomes
Canotilho e Vital Moreira (2007, p. 200), afirmam que na condição de standard de
proteção universal que obriga a adoção de normas e convenções que visam garan-
tir um direito internacional adequado à proteção da dignidade da pessoa huma-
na, tanto na sua condição individual quanto coletiva (humanidade, povos, etnias).
Mas Garcia vai mais longe nesta reflexão, ao associar a questão precisamente aos
aspetos raciais. Coloca, ainda, questões pertinentes, salientando que por opções
políticas de gerações passadas, procurando equilibrar as condições de partida de
gerações futuras, são as gerações presentes afetadas por políticas de discrimina-
ção positiva, questionando, igualmente, qual o alcance destas, de modo que não
violem o princípio da igualdade que as torna necessárias (p. 25).
Se é relevante notar que Garcia menciona especificamente as questões das
populações racializadas, salienta-se, de igual modo, que Miranda e Medeiros, ao
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No mesmo sentido Miranda & Medeiros (2017, p. 173).
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